45 anos depois, vai haver de novo tropas portuguesas em Cabo Delgado?
Portugal e a UE fariam melhor se encarassem a situação em toda a sua complexidade, em vez de apoiarem exclusiva e incondicionalmente o Governo da Frelimo e a sua estreita visão militar para a solução do conflito em Cabo Delgado.
Na última quarta-feira, o ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, afirmou que Portugal poderá enviar militares para ajudar Moçambique a combater o terrorismo no Norte do país. Também o ex-presidente Ramalho Eanes declarou: “Havia uma resposta fácil desde que houvesse força e iniciativa e uma acção de mobilização da Europa e das Nações Unidas, e é muito fácil, havendo forças especializadas e drones, resolver a situação.”
Desde há duas semanas, o tom e o número de vozes que alertam para a necessidade urgente de Portugal apoiar Moçambique na luta contra o terrorismo em Cabo Delgado vêm aumentando. O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, deputados de vários partidos e comentadores anunciam cada vez mais alto essa urgência.
Também na última semana, António Costa telefonou ao Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, comunicando-lhe que “Portugal está solidário e disponível para apoiar os esforços de Moçambique para combater o terrorismo em Cabo Delgado, bilateralmente e no quadro da UE”.
É inegável que os ataques bárbaros aumentaram nas últimas semanas, que mais de 2000 pessoas morreram e que, dos oito distritos afectados, quase meio milhão de pessoas estão em fuga. No entanto, o Governo moçambicano continua a recusar-se a enfrentar as múltiplas causas deste conflito, das quais uma parte considerável é da sua própria responsabilidade.
Está, assim, a impedir que, para além de uma ofensiva militar, sejam tomadas outras medidas importantes para abordar as causas do conflito, nomeadamente que dêem à população local perspectivas de uma vida digna.
Se estas considerações fossem escritas em Moçambique, eu estaria imediatamente na mira dos serviços de segurança.
Ainda na semana passada, o Presidente moçambicano declarou, durante uma visita às forças armadas: “Queremos exortá-los (as FDS) a tudo fazerem para apurar a veracidade dos factos. Estarem atentos a qualquer tendência de difundirem quaisquer imagens ou notícias. A vigilância deve partir de vocês mesmos. Não podem ser denegridos deliberadamente e, passivamente, estarem a assistir sem responsabilizar esse tipo de compatriotas.”
Significa isto que é perigoso elaborar relatórios transparentes sobre o que está a acontecer em Cabo Delgado. É, pois, positivo que Ana Paula Zacarias, secretária de Estado dos Assuntos Europeus, tenha, mais uma vez, salientado publicamente que Moçambique deverá autorizar uma missão da UE a Moçambique e, concretamente, a Cabo Delgado. Isso seria necessário para ajudar a avançar e um passo fundamental para que mais possa ser feito. Esta missão já poderia ter acontecido há bastante tempo, mas a devida autorização continua pendente. Porquê? O que tem o Governo moçambicano a esconder?
Há cada vez mais estudos, bem fundamentados, realizados por instituições reconhecidas – como o que acaba de ser apresentado pela Universidade das Nações Unidas (UNU-Wider) –, que passam um atestado arrasador ao governo da Frelimo e demonstram que, em todos os sectores, muito mais poderia ter sido feito desde a independência – possibilitando que Moçambique deixasse de ocupar, a nível mundial, um dos últimos lugares em termos de indicadores de desenvolvimento.
Segundo refere na sua última newsletter o especialista moçambicano Joe Hanlon: “O estudo confirma que uma pequena elite da Frelimo criou aquilo a que se chama uma sociedade de ‘acesso limitado’, na qual um pequeno grupo partidário controla o Estado, o utilizou para se tornar dominante nos negócios e retém o poder através do controlo das instituições.” Assim, o sofrimento do povo de Cabo Delgado na actual guerra civil é, infelizmente, a expressão mais extrema da falta de desenvolvimento nas últimas décadas e não pode ser solucionado apenas por meios militares.
A incapacidade do governo provincial de Cabo Delgado foi agora demonstrada durante uma apresentação feita por uma directora desse governo provincial, que não só não pôde apresentar medidas concretas do governo provincial para responder à dramática situação em Cabo Delgado, mas também não esclareceu por que é que a organização de desenvolvimento ADIN, criada pelo governo há meio ano atrás para actuar nas três províncias do norte de Moçambique, ainda não completou um plano estratégico, nem implementou quaisquer actividades. Isso teria colocado o Estado em posição de prestar apoio aos milhares de refugiados, em vez de apenas enviar apelos à comunidade internacional de doadores.
Na apresentação do já referido estudo da UNU-Wider, até o ex-ministro moçambicano dos Negócios Estrangeiros, Leonardo Simão, afirmou: “O Governo aprendeu a gerir os doadores e a ajuda, mas nunca aprendeu a desenvolver o país.”
Como alguém disse recentemente em Cabo Delgado: “Quando falam sobre o pregador radical que vem radicalizar os jovens, esquecem-se que o Governo fez cerca de 80% do trabalho para o pregador radical. Ele só vem para colher os frutos.”
Assim sendo, Portugal e a UE fariam melhor se encarassem a situação em toda a sua complexidade, em vez de apoiarem exclusiva e incondicionalmente o Governo da Frelimo e a sua estreita visão militar para a solução do conflito.