“Percebi que tinha estado resvés com as paredes da morte”

Maria Emília Apolinário foi internada no Hospital de Santa Maria em Junho. Foi para casa no final de Julho, depois de passar vários dias em coma induzido. Hoje ainda recupera das marcas da infecção que quase lhe levou a vida.

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Maria Emília Apolinário tem 63 anos e vive em Lisboa Nuno Ferreira Santos

A conversa dura cerca de duas horas, mas a forma como começa já diz muito: Maria Emília Apolinário confessa que a memória já não é o que era e pede um momento para ir buscar o caderno onde está tudo apontado. Demora apenas um minuto mas volta ofegante, demasiado cansada para o pequeno esforço, e conta: “Tudo continua a ser aleatório, há dias em que estou mais cansada e outros que um pouco menos.” Muita coisa mudou na vida de Maria Emília desde que foi infectada pelo vírus SARS-CoV-2 em Junho e ficou gravemente doente com covid-19.

A professora de 63 anos que vive com o marido num apartamento em Lisboa, tem um registo pormenorizado de tudo o que lhe aconteceu. Mesmo nos dias em que esteve em coma induzido na unidade de cuidados intensivos do Hospital Santa Maria, em Lisboa. Mas não era preciso o caderno de apontamentos (preenchido pela filha) para encontrar o rasto da doença que quase lhe roubou a vida. As marcas são óbvias, diz. Há, desde logo, um estranho sulco visível na bochecha que os médicos dizem que pode ter sido causado pela pressão de um tubo no rosto durante os vários dias que esteve com ventilação assistida, virada de barriga para baixo. “Como fazemos na praia?”, lembra-se de perguntar aos médicos, num estado febril e já bastante confuso. Mas o pior estava para vir.

Na altura em que foi internada, Maria Emília já tinha perdido a sua sogra e já somava alguns meses de angústia pelo medo que o marido, que antes teve um linfoma e um enfarte, ficasse infectado. Até hoje não foi. A má sorte de um diagnóstico positivo saiu-lhe a ela e o desenrolar da doença dificilmente podia ter sido pior.

“Nós que estamos lá dentro nem nos apercebemos bem, custa mais para quem fica cá fora, à espera”, lembra várias vezes durante a conversa. Não fosse o caderno de apontamentos que a filha, na Alemanha, foi construindo à distância com os dados das conversas diárias com os médicos, Maria Emília Apolinário teria já esquecido muita coisa. É com esta cábula da memória que sabe dizer que temperatura tinha em tal dia, o dia em que ficou em coma induzido, o dia em que os exames começaram a mostrar melhoras, o dia em que acordou e abriu os olhos, o dia em que passou para a enfermaria e, por fim, o dia em que, cansada, veio finalmente para casa, de cadeira de rodas.

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“Não tive tosse, nem perdi o cheiro ou o paladar”, conta, enumerando “apenas” os primeiros sintomas das “dores no corpo, a perda de voz e febre”, que surgiram poucos dias depois da morte da sogra, a 14 de Junho. A febre baixa e a voz rouca terão começado a 18 de Junho, mas o seu estado foi piorando. Acabou por chegar ao “pavilhão do Santa Maria” na manhã de 26 de Junho, já bastante atordoada com uma febre persistentemente em alta e o oxigénio em baixo e com uma pneumonia bem visível a tomar conta dos pulmões. Ficou internada. Menos de 48 horas depois, a 28 de Junho, foi transferida para os cuidados intensivos. “Quem sofre mais é quem está cá fora”, insiste, lembrando que apenas recorda “muitos aparelhos, luzinhas e barulhos a apitar e as vozes de pessoas de bata só com os olhinhos à mostra”. “Virei-me para baixo e não me lembro de mais nada.”

No caderno vê que a 1 de Julho o seu estado tinha-se já agravado e foi entubada para ventilação. Passaram depois cinco dias sem grandes progressos e a equipa dos médicos intensivistas ponderava avançar para a ECMO, uma técnica de suporte vital extracorporal. Mas, as imagens nos exames após os vários dias de medicação, começaram a exibir umas “pequenas melhorias”.

“Dia 9 estava ligeiramente melhor, dia 10 ligeiramente melhor, dia 11 ligeiramente melhor e dia 12 acordei, tiraram a ventilação e sem ventilador consegui respirar sozinha”. Ainda na unidade de cuidados intensivos, mas já numa outra ala do serviço, continuou a recuperar. “E foi aí que começaram os delírios”, conta, com um tom de angústia.

As imagens de um gangue que a raptou, do qual faziam parte alguns médicos e enfermeiros, e a certeza de ter a família toda morta e até de assistir ao seu próprio funeral, são marcas que não estão no bloco de apontamentos mas bem presentes na memória. “Um pesadelo”, lembra. Um pesadelo enquanto acordava. “As pessoas estavam entrelaçadas umas nas outras, o gangue perseguia-me a mim e ao meu marido, sabiam tudo sobre nós e havia um médico que me administrava medicação, para me matar”.

Maria Emília Apolinário acabou por ter a noção dos delírios mas pensou que fosse algo que tivesse acontecido só com ela. Mais tarde, explicaram-lhe que a forte medicação e estado de coma induzido poderia explicar as alucinações. “A história do delírio em si não é importante, mas sim a força do delírio que modifica a realidade em que estamos”, sublinha. Foram quatro longos dias com delírios, numa “boxe” dos cuidados intensivos, sem falar com ninguém. Um apoio psicológico – “alguém, que me dissesse que o que eu estava a sentir era normal” – teria sido importante, avalia. Porque “não há nada pior do que nós não termos uma explicação para algo que sentimos que está a acontecer”.

Pouco a pouco, a fase delirante foi passando e a 16 de Julho foi levada para uma enfermaria de Medicina Interna com pessoas infectadas com covid. “Ali fiquei revoltada, foram uns dias péssimos, chamava àquele quarto as masmorras.” Caiu quando um dia resolveu levantar-se e percebeu que a força das pernas não estava lá e, por causa disso, no dia seguinte acordou amarrada à cama. A 19 já com resultados negativos foi transferida para outro quarto e sem amarras. A 24 de Julho, saiu do hospital de cadeira de rodas e foi para casa.

“O que é que eu trouxe para casa? Trouxe um tromboembolismo pulmonar bilateral, uma pneumonia organizativa, aqueles delírios e alteração de consciência, uma lesão no ombro, menos seis quilos e menos massa muscular, a úlcera de pressão na face esquerda, a memória a falhar e muito, muito, cansaço”, lembra. Desde aí gasta os dias a aprender as coisas simples de novo, a andar, a comer, a tomar banho, a falar duas frases seguidas sem ficar sem fôlego…

A parte motora tem melhorado com o apoio de sessões de fisioterapia, o sulco na face terá de ser corrigido com uma cirurgia, dos delírios já só sobra a dura memória deles, o cansaço “tem dias” piores e menos maus. Na mesinha de cabeceira encontra agora os vários comprimidos que tem de tomar diariamente, desde os corticóides que a deixam inchada, à medicação para a tiróide que teve de ser reforçada, para o coração, para o estômago.

Mas Maria Emília Apolinário não trouxe só cansaço, comprimidos, males e mazelas para casa. Trouxe também uma imensa gratidão aos dedicados médicos que “estão ali a salvar vidas”, a toda a equipa que salvou a sua vida. “Eles estão ali todos a apalpar terreno e só com o passar do tempo é que vão percebendo o que aparece. Eles também estão a aprender. E cada doente é um doente.” Aplaude os profissionais e viu reforçada a importância que dava ao SNS.

Quase seis meses depois do teste positivo, Maria Emília Apolinário diz que já tem boas notícias. Há, por exemplo, uma melhoria evidente nos exames e na força. Não está nos 100% ainda mas estará, com optimismo, nos 60 ou 70% do que era antes. E há ainda uma outra ideia importante que trouxe para casa e que, tal como o seu corpo, também ganha força a cada dia que passa: “Vim para casa e percebi o sítio onde tinha estado: ali, resvés com as paredes da morte. Agora, olho para a minha vida e para as minhas pessoas de outra maneira. Dou mais valor à família e aos amigos. As prioridades mudam. Eu tinha todos os cuidados e é preciso que as pessoas saibam que este vírus apanha qualquer um na primeira curva.” Em caso de dúvidas sobre a gravidade desta infecção basta consultar o pequeno caderno de apontamentos que a filha de Maria Emília foi juntando com carinho e com a certeza de que a mãe o leria um dia, para si e para contar aos outros.

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