Da gripe A ao SARS. As pistas para o que vai ser o Natal com covid-19
Os surtos de gripe A e SARS dão pistas para o que pode ser o Natal com covid-19. Especialistas dizem que normalidade será impossível e apelam a que não haja encontros com muitas pessoas para se evitar uma nova vaga já em Janeiro.
Depois da Páscoa cancelada e de um Verão com máscaras na cara, o Natal com covid-19 apresenta-se carregado de incertezas. Grupos pequenos, viagens limitadas e recolheres obrigatórios são os “presentes” que alguns governos europeus têm para as próximas semanas. Ao PÚBLICO, especialistas que analisaram outros problemas de saúde pública alertam para os riscos associados à quadra festiva e pedem cautelas para se evitar uma possível uma terceira vaga nos primeiros meses de 2021.
A pandemia da gripe A, com origem no México, atingiu os EUA no final de Março de 2009. De acordo com a revista científica The Lancet, entre 2009 e 2010 terão morrido entre 151 mil a 575 mil pessoas em todo o mundo. Em Dezembro de 2009, quanto a pandemia começava a abrandar, as autoridades de saúde pública concentraram-se nas festividades de final de ano para perceber o impacto no aumento de contágios.
Encontros familiares podem contribuir para nova vaga
Pengyi Shi, agora da Universidade de Purdue (no Indiana, EUA), fez parte de uma equipa de investigadores que estudou, em 2010, as consequências dos encontros familiares e do regresso às rotinas depois das festas do final de ano no H1N1, também conhecido por vírus da gripe suína.
Através de um modelo matemático, o grupo de trabalho, que contou com mais três investigadores, projectou vários cenários, aplicados ao estado da Georgia, para perceber como evoluíram outras crises de saúde pública semelhantes, como agora o caso da covid-19.
Os cientistas chegaram à conclusão de que eventos de massa, quando ocorrem dez dias antes de um pico, podem contribuir para um aumento de 10% na prevalência desse mesmo pico e para uma subida de novos casos de infecção, sugerindo o adiamento de qualquer actividade festiva que junte grandes quantidades de pessoas.
Um outro dado interessante aponta para a possibilidade de novos picos epidémicos, ou novas vagas, que são potenciados quando se dá o regresso de estudantes às universidades e de trabalhadores aos locais de trabalho depois das férias e das reuniões familiares.
“Encontros com família e amigos são um risco. Devemos manter as cautelas se não se quiser cancelar esses momentos”, explica Pengyi Shi, que projecta agora um Natal diferente por causa da covid-19: “Muito dificilmente teremos um Natal com qualquer normalidade.” Neste sentido, sugere “diminuir ao máximo as viagens” e aconselha o “uso de máscara” e a “prática do distanciamento social” mesmo nos encontros com familiares e amigos.
SARS simulou crise da covid-19
Já no início do milénio, entre Novembro de 2002 e Julho de 2003, a SARS foi observada em 26 países, causando mais de oito mil casos da doença, que provocaram 774 mortes e uma letalidade de 9,6%. Esta crise afectou sobretudo os países asiáticos e não houve casos em Portugal. Ainda assim, Jaime Pina, pneumologista e vice-presidente da Fundação Portuguesa do Pulmão, integrou o grupo de profissionais que na altura elaborou as normas do Plano de Contingência para a eventualidade de o surto atingir Portugal. Para o especialista, a crise sanitária, mesmo que em “ponto muito pequeno”, simulou “o que se iria passar em todo o mundo 17 anos depois com a pandemia SARS-CoV-2”.
No final de Janeiro, que coincide com o Ano Novo chinês, os casos de SARS estavam restritos à China, “que tentou esconder a origem da crise sanitária”, sendo que pouco se sabe do que aconteceu na região. Mesmo assim, o especialista recorda que o distanciamento físico, a protecção respiratória com a máscara facial e o isolamento dos doentes” foram medidas prontamente aplicadas na Ásia. “Os povos asiáticos, fortemente atingidos pela epidemia de 2002-2003, tinham bem presente a forma de a combater e não hesitaram quando surgiu este segundo coronavírus”, explica.
No terreno esteve o australiano Dale Fisher a acompanhar a evolução do vírus SARS em Singapura, em 2003. O especialista em doenças infecciosas, embora sublinhe as diferenças entre o SARS e o SARS-CoV-2 (o coronavírus que provoca a covid-19), desaconselha grandes projectos para as festividades natalícias. “Eventos religiosos, refeições em restaurantes e encontros entre familiares demonstraram ser focos de contágio quando enquadrados sem regras de segurança. Quando não se pode cumprir regras de distanciamento ou o uso de máscara, este tipo de eventos, assim como as pessoas que neles participam, [devem ser limitados]”, adianta.
Perante esta experiência, Jaime Pina projecta um Natal e Ano Novo não muito diferentes do que aconteceu com a Páscoa: “Teremos que restringir a festa aos elementos familiares mais chegados. Dito por outras palavras, este ano os amigos e os elementos familiares mais alargados não deverão estar presentes. Quanto maior for o número de pessoas, maior é o perigo.” Neste contexto, o especialista destaca o papel que os testes rápidos, que “são cada vez melhores, mais baratos e, por isso, com tendência para se generalizarem”, podem ter na mitigação do problema. “Restringir o mais possível o número de pessoas e proceder à testagem dos intervenientes pode ser a solução. Se forem cumpridos estes dois pressupostos, as festas decorrerão de uma forma bem mais segura e tranquila”, explica ao PÚBLICO.
Casos de gripe podem sobrecarregar hospitais
Até esta altura, os dados de gripe apontam para um ano com valores baixos, com uma incidência de zero nas duas primeiras semanas de Novembro, de acordo com dados do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, em Lisboa. Os picos, tal como aconteceu nos últimos seis anos, registam-se entre a segunda quinzena de Dezembro e o final do mês de Janeiro, indicando um possível aumento da pressão nos hospitais por essa altura.
Foi precisamente isto que Leah Martin estudou entre 2004 e 2014, enquanto investigadora de pós-doutoramento no Canadá, associando o aumento de idas ao hospital por causa de sintomas relacionados com a gripe e as festividades de Natal e Ano Novo, em Edmonton, capital da província de Alberta.
Nos anos com menos incidência de síndrome gripal, como está a acontecer este ano em Portugal, mas também em países como os EUA e Canadá, o pico de visitas aos serviços de urgência em casos relacionados com gripe registaram-se precisamente nas semanas de Natal e Ano Novo, com a média de visitas diárias quase a duplicar nessa altura quando comparada com o resto do período gripal.
“É difícil de prever como será a utilização dos serviços de saúde este ano. No entanto, tendo em conta estes números, especialmente dedicados ao que acontece no Canadá, podemos esperar uma pressão maior nos hospitais durante o período fetsivo”, explica ao PÚBLICO Leah Martin. “Precisamos de ter cautelas acrescidas para evitar a propagação da infecção e seguir as directrizes das várias autoridades. Infelizmente, isto pode significar evitar o encontro com pessoas que vivem fora da nossa casa”, refere.
Espaços fechados e com pouca ventilação aumentam risco de infecção
Apesar da distância geográfica em relação ao Canadá, e do carácter sazonal do vírus da gripe, Diana Fernandes da Terra, médica naval e infecciologista do Hospital das Forças Armadas portuguesas, aponta também que no Inverno, “especificamente na época festiva, se juntam várias pessoas, com proximidade física e em ambientes com menos ventilação natural, o que facilita a transmissão viral”. Além disso, estes encontros, por “reunirem gerações diferentes”, são um risco acrescido para as pessoas com “fragilidades de saúde que ficam predispostas a um quadro mais grave da doença”.
A especialista olha ainda com cautela para o uso de testes para “salvar” o Natal. “Já tivemos vários pedidos nesse sentido de pessoas que pensam que, realizando um teste e sendo este negativo, a família ficará segura para se reunir na época festiva. Ora, os testes apenas diagnosticam vírus em multiplicação activa, podendo ser negativo na fase inicial de incubação”, explica, sublinhando o risco de “uma falsa sensação de segurança”.
“As férias escolares e a redução da actividade laboral em alguns sectores podem ajudar na redução da transmissão do vírus. Mas é provável que, com os convívios familiares e sociais típicos da época, surjam novas cadeias de transmissão”, defende, por seu lado, Mário André Macedo, enfermeiro especialista em saúde infantil e pediátrica no Hospital Amadora-Sintra.
O profissional que está na linha da frente da resposta aos doentes com covid-19 sublinha a combinação de factores que podem potenciar novos casos, gerando uma eventual terceira vaga: “Contacto prolongado, sem qualquer tipo de protecção num ambiente fechado e com várias pessoas não pertencentes ao núcleo familiar.” Por isso mesmo, explica: “É necessário gerir o risco e trabalhar colectivamente. Ainda há muito desconhecimento sobre esta doença, mas sabemos que, ao diminuir as oportunidades de contágio, haverá menos infectados.”