Jorge Soares: “A prioridade é uma precedência, mas todos terão direito a ser vacinados”

O presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Jorge Soares, alerta que os critérios éticos não devem ser esquecidos no plano de vacinação da covid-19.

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Jorge Soares, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida Ricardo Lopes

É importante definir princípios e valores nas decisões sobre os grupos prioritários da vacina da covid-19, reagiu esta sexta-feira Jorge Soares, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), já depois de uma proposta preliminar da comissão de especialistas nomeada pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) ter sido noticiada. Para Jorge Soares, deve ser explicado às pessoas o que significa ter prioridade e uma comunicação clara do processo é fundamental para a percepção pública do que está realmente em causa. Informa ainda que o CNECV está a preparar uma posição sobre os critérios éticos ao nível da vacinação. Mas há algo que está a dificultar o processo: o conselho terminou o seu mandato em Março e, até agora, não houve recondução.

Caso a proposta preliminar da comissão de especialistas da DGS seja aprovada, as pessoas entre os 50 e os 75 anos com doenças graves, como insuficiência cardíaca, respiratória e renal, os funcionários e utentes de lares de idosos e os profissionais de saúde envolvidos na prestação directa de cuidados deverão ser os primeiros a ser vacinados contra a covid-19. Esta proposta ainda só foi noticiada pelos órgãos de comunicação social e ainda está a ser discutida.

“A hierarquização de prioridades está bem estabelecida por várias agências internacionais, como a Organização Mundial da Saúde”, começa por reagir Jorge Soares. “Nesta hierarquização de prioridades, há aspectos que são clínicos e epidemiológicos, bem como princípios e valores. Há critérios científicos e éticos que não vi abordados, nomeadamente na nomeação desta comissão.” O presidente do CNECV assinala que, por exemplo, na Alemanha se pediu há já algum tempo uma posição do Conselho Nacional de Ética Alemão e da Academia Leopoldina.

Por isso, questiona e considera: “Aconteceu alguma coisa em Portugal? Não. Em vez de se saber só se as pessoas devem ser dos 50 aos 75 anos, o importante é definir princípios e valores para os procedimentos.” Jorge Soares destaca que o acesso à vacina tem de ser equitativo, justo, não pode discriminar ninguém e que isso deve ser bem transmitido às pessoas. “Se passa a ideia contrária, as pessoas ficam com a noção de que estão a ser discriminadas.” Para que isto seja bem-sucedido, deve haver transparência. “A comunicação clara e eficaz é fundamental para a percepção pública do que está em causa.” E o que está em causa? “Não é só a protecção individual, mas também a protecção colectiva, porque a saúde é um bem público global. Esta noção não está a ser transmitida às pessoas.” Afinal, quando se aplica a vacinação, também se está a contribuir para a erradicação de uma doença.

Um dos receios de Jorge Soares é o de que as pessoas possam ficar com a percepção de que prioridade significa que umas pessoas vão receber a vacina e outras não. “Gostava que o Governo conseguisse explicar às pessoas que a prioridade é uma precedência, mas que todos terão direito a ser vacinados, se o quiserem. A noção que se cria é que uns vão receber e outros não”, assinala. Como tal, para uma boa aceitação, é necessária a tal transparência “muito grande” nos critérios científicos, éticos e jurídicos, bem como passar a noção de que não devemos todos ser protegidos ao mesmo tempo, mas que poderemos todos ser protegidos. “Uma sociedade pode ter pessoas com precedência, mas não pode ter pessoas que tenham um benefício e outras que não o tenham.”

“Em condições normais, [já] teríamos uma posição”

Ainda há muitas questões ao nível da distribuição ou imunidade da vacina. E, mesmo quando se tomam decisões e não se têm certas respostas, deve-se ser transparente e dizer às pessoas que algo ainda não está demonstrado cientificamente ou que se tomou uma decisão “com base na prudência”, indica Jorge Soares. A transparência na informação deve também estar presente, por exemplo, nas possíveis reacções adversas que as vacinas poderão ter – que se espera que sejam poucas e leves. “Mas as pessoas têm de ser informadas que para depois não haver um efeito negativo.” Esse efeito negativo pode ser depois visível na vontade de as pessoas se vacinarem quando a vacina estiver disponível.

Uma investigação iniciada em Abril e que junta sete equipas de países da Europa (incluindo da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, em Carcavelos) divulgou este mês, que, em três meses, a percentagem de portugueses que não querem ser vacinados contra a covid-19 ou que estão indecisos, assim que uma vacina estiver no mercado, aumentou significativamente.

O CNECV​ está a preparar uma posição exclusivamente sobre a vacinação. “É uma posição sobre os critérios éticos que devem ser aplicados quando se está perante recursos limitados e em que se tem de definir precedência no modo como se acede a esses recursos, bem como a questão da obrigatoriedade”, esclarece Jorge Soares, salientando que se está a trabalhar neste assunto mesmo que “ninguém tenha feito a encomenda”, tal como não aconteceu com as outras posições do conselho sobre a pandemia da covid-19.

“Em condições normais, neste momento, teríamos uma posição”, afirma. Contudo, o CNECV terminou o seu mandato em Março e, até agora, não houve uma recondução. “O conselho está a aguardar ser substituído. Até agora, não temos nenhuma informação, e isso leva a que as pessoas possam ter algumas reticências em estar a elaborar um texto que não seja assumido pelo conselho que aí venha.”

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