“Nudes desta, alguém tem?” O contra-ataque para a violência sexual online também já chegou às redes sociais
Vídeos e imagens partilhadas em grupos com milhares de utilizadores: a violência sexual online aumentou durante a pandemia. Nas redes sociais, dois movimentos tentam quebrar a corrente e mostrar que o crime é cometido por quem partilha sem consentimento.
“Sabes aquela sensação de que toda a gente está a olhar para ti?” Eduarda Neves esforçou-se por afastar o pressentimento de que era ela o epicentro “dos comentários e risinhos” do almoço no refeitório do colégio. Mas a intuição passou a certeza quando uma colega de turma se aproximou e lhe perguntou se estava bem. Foi assim que Eduarda descobriu que um colega de quem gostava filmou o encontro sexual que tiveram naquela manhã e, antes ainda da hora do almoço, publicou o vídeo nas redes sociais. Uma manhã de aulas bastou para o vídeo se espalhar por várias escolas de Vila Nova de Gaia e do Porto.
“Ele gravou-me sem o meu conhecimento e sem o meu consentimento”, conta a jovem de 19 anos, que na altura era menor. “Difamou muito a minha imagem. Andei até ao final do secundário a ser julgada. Cheguei a ser ameaçada e a levar com muitos comentários negativos diariamente. Visto pelas pessoas em geral, e nas palavras que li e ouvi, ‘ele é que é o rei’. Aquilo estava a ser partilhado numa plataforma que tem uma dimensão enorme e, de repente, um acto que é normal entre duas pessoas transformou-se num tabu. O meu nome não tinha sido divulgado, mas ele fez questão de contar que era eu. E quando se conta a uma pessoa, a palavra espalha-se e toda a gente ficou a saber.”
Passados uns meses, o rapaz pediu-lhe desculpa. Os dois terminaram o secundário no mesmo colégio, embora Eduarda tenha sentido uma diferença de tratamento, incluindo da parte da direcção da escola, propriedade da Diocese do Porto. “O colégio caiu todo em cima de mim. Tive de me privar do meu telemóvel e deixá-lo na portaria, num cofre. No entanto, a pessoa que gravou o vídeo não teve de fazer isso. Nunca me explicaram porquê. Simplesmente deixaram-se levar pelo julgamento de toda uma sociedade que comentou o que quis e criticou sem conhecer a realidade.”
O testemunho de Eduarda Neves e de outras adolescentes e mulheres que têm sido divulgados nas últimas semanas, em jornais e redes sociais, não são relatos esporádicos. Muitas vezes chamada “pornografia de vingança” ou “pornografia não-consentida”, a distribuição de vídeos, imagens ou mensagens explícitas ou íntimas sem consentimento é crime em Portugal e encaixa melhor numa forma de “violência sexual online”, defendem Patrícia Mendonça e outras investigadoras.
Isto porque ajuda a afastar a noção, ainda muito entranhada na sociedade, de que a culpa é da vítima e “que o acto captado é um acto pornográfico”. “Não é, é um acto de intimidade que qualquer pessoa pratica.” A descrição também pode ter implicações em contexto legal e na forma como este fenómeno é conhecido socialmente. Leva a que queixas-crime e denúncias não avancem se a imagem não for “completamente explícita” ou usada para fins predominantemente sexuais.
“Basta uma simulação de um acto sexual ou uma pessoa em lingerie”, salvaguarda a psicóloga, que estudou esta forma de violência entre estudantes universitários em Portugal. “Ao chamar pornografia, estamos a focar-nos mais no acto sexual ou na intimidade que foi partilhada de cariz sexual, isto é, estamos a focar mais a atenção na vítima do que no agressor, quando quem comete o crime não é a vítima”, conclui.
É esta última frase que Inês Marinho e Mariana Fernandes querem cravar nas mesmas plataformas usadas pelos agressores. Os nomes dos dois movimentos online que criaram funcionam como um despertador: Não Partilhes e Corta a Corrente.
“O meu foco tem sido sensibilizar a população em geral, principalmente a pessoa que recebe este tipo de conteúdos e que não tem a percepção do impacto que isto pode vir a causar às vítimas. A mensagem é: ‘Não partilhes, corta a corrente, sensibiliza a pessoa que enviou e denuncia’”, apresenta Mariana.
A bancária de 3o anos começou por enviar slides informativos aos amigos, depois de um vídeo de um acto sexual entre três jovens num comboio da CP se tornar viral. “Mais uma vez, testemunhei as diferenças de tratamento entre a rapariga e os dois rapazes. Na nossa cultura, existe o incentivo para a mulher se expor, mas depois também existe o julgamento”, verifica. “Mesmo sendo vítimas, há bastante pouca empatia com estas mulheres. Recebi vários comentários a dizerem que a mulher era merecedora daquele tratamento, quer seja por se ter deixado filmar ou por ter fotos mais atrevidas nas redes sociais. Uma amiga da rapariga do vídeo veio falar comigo e fiquei a saber que as mulheres da família da rapariga também já estavam a sofrer assédio na rua, já não era apenas na Internet.”
Começou a pensar no que era preciso fazer. “É importante sensibilizar as pessoas para as consequências, mas também é importante responsabilizar as redes sociais e, depois, na parte criminal portuguesa, facilitar este tipo de denúncias”, acredita.
Está a reunir assinaturas para duas petições. Uma delas propõe tornar a violência sexual online um crime público, de forma a “que a responsabilidade de apresentar queixa-crime não recaia exclusivamente sobre a vítima, que poderá estar fragilizada e, por isso, não fazer queixa”. A outra quer aumentar a responsabilização das redes sociais que dizem, nas suas Políticas de Conteúdo, serem contra a pornografia infantil e não-consentida. “É mais fácil culpar o utilizador que partilhou um vídeo/uma imagem uma vez. Mas se estas plataformas não existissem, a partilha de pornografia não-consentida não atingia a dimensão que tem nos dias de hoje”, considera.
Foi a mesma resposta que deu Eduarda Neves, quando lhe perguntámos como é que o vídeo em que ela aparecia foi partilhado até por pessoas que a conheciam pessoalmente. “São as redes sociais. Não podemos esperar outra coisa. Uma vez partilhado, para sempre partilhado. As pessoas partilharam e preocuparam-se mais em mostrar aos outros que sabiam o que estava a acontecer, de forma negativa. Nem se preocuparam com o que estava a acontecer. O que era importante era que fosse partilhado e que os outros vissem. Quanto mais gente visse, melhor. É sempre mais fácil deixar-se ir pela corrente”, disse.
#NãoPartilhes
Para Inês Marinho, criadora do movimento online #nãopartilhes, a causa é pessoal. Como a maior parte dos testemunhos que lhe chegaram no último mês, também ainda não tinha 18 anos quando viu fotografias da sua conta no Instagram “partilhadas com mau intuito num grupo no Facebook com 20 mil pessoas”. Chamava-se Rebarbados 2.0.
Anos depois, “uma pessoa em quem achava que podia confiar e afinal não podia” partilhou fotografias íntimas suas em alguns grupos que proliferam em aplicações mais recentes como o Telegram, o Wickr Me, o Discord, o Volafile, o Reddit ou o Only Fans.
A preocupação já não é apenas imagens partilhadas, roubadas por hackers para extorquir bitcoins ou conseguidas sem o conhecimento da pessoa em locais públicos. Existem programas informáticos gratuitos que tornam cada vez mais fácil simular fotografias falsas, recorrendo a imagens com corpos semelhantes e criar vídeos com a cara da pessoa, os chamados deepfakes. Em Outubro, a empresa de segurança Sensity alertou para um canal no Telegram que permite enviar uma fotografia de uma mulher e obter uma imagem convincente dessa pessoa nua. “Começou a acontecer em massa nestas plataformas”, observa.
Muitas vezes, nestes grupos, um utilizador partilha um perfil nas redes sociais e pergunta: “Nudes desta, alguém tem?” Uma jovem mulher que foi alertada para a partilha da sua conta de Instagram num dos grupos no Telegram, na altura chamado Pussylga e com seis mil membros, ameaçou fazer queixa. O administrador do grupo respondeu-lhe, sob o pseudónimo de Sr. Importante: “É verdade que sou administrador desta grande casa. Mas se a Sr.ª fica ofendida por solicitarem conteúdo seu, eu cá ficaria orgulhoso, é sinal que causou impacto positivo na vida de algumas pessoas”. Noutras mensagens, agradece-se o facto de “haver um espaço onde os homens ainda podem ser homens”.
“Já não se pode ser homem”?
Tiago Rolino repete a pergunta. “O que define ser homem não pode ser pelos padrões da masculinidade hegemónica, que trata as mulheres como objectos sexuais e que não tem respeito pela privacidade das pessoas. Um homem pode gostar de ver pornografia, pode gostar de partilhar imagens sexualizadas, não pode é ir contra a vontade e a privacidade das outras pessoas. Porque aí já estamos a falar de uma coisa que não é tipicamente masculina, mas sim um comportamento incorrecto”, responde o ex-advogado, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e da equipa portuguesa do projecto Equi-X.
A vingança não é a única motivação que leva alguém a partilhar uma fotografia, vídeo ou mensagem de texto ou som com cariz sexual ou íntimo que lhe foi enviada com expectativas de privacidade. E, num crime onde os maiores perpetradores continuam a ser homens, o “entretenimento” ou um desejo de “reforço da sua masculinidade” também são apontados como razões, diz Patrícia Mendonça. “Muitas vezes, quando não se conseguem destacar e fazer valer a sua autoridade, pela personalidade ou por outras razões, fazem-nos pela partilha de coisas que são tipicamente masculinas, como vídeos de agressões ou vídeos privados”, reforça Tiago Rolino.
Tanto Patrícia Mendonça como Tiago Rolino trabalharam em projectos com jovens em idades escolares em que o tema da violência sexual por imagens foi “amplamente debatido”. “Além de explicar como “funciona a Internet”, diz a psicóloga, é importante explicar “as questões do consentimento”. “Porque, muitas vezes, a educação sexual foca-se nos aspectos biológicos e esquece educar para uma sexualidade baseada no respeito, no diálogo e, principalmente, no consentimento que não é só oral, tem de ser acompanhado de um consentimento não-verbal” — o que autores definem como “consentimento entusiasta”.
Depois, é importante estimular o não-julgamento da vítima e a crítica, porque “parece que há uma tendência voyerista quando há algum vídeo”, continua. “Explicar que partilhar uma coisa que nos enviaram em privado com outras pessoas é uma forma de violência. Também queremos quebrar o ciclo de violência porque se a anestesiamos, se aceitamos que sejam partilhadas num grupo onde nós estamos e não dizemos nada, obviamente estamos a perpetuar este ciclo de violência”, continua Tiago Rolino.
Parar e responder a perguntas como: “Para que é que vou ver isto? Quais são as consequências? O que é que ganho em ver isto e até que ponto contribuo para o fenómeno se também vir isto ou se partilhar?” A sensibilização é frutífera quando “alguma voz se levanta dentro do grupo que partilha”, defende, “porque há gente que vai ver que não é preciso ter esses comportamentos para se impor, há outras formas de sermos aceites.”
O contra-ataque (e a sensibilização)
Em 2018, a Assembleia da República aprovou penas mais pesadas para os crime da devassa de vida privada online, especialmente em contextos de violência doméstica. Mas Mariana Fernandes diz que, nos tribunais que também são as redes sociais, este crime ainda cai numa “área cinzenta”, em Portugal. “A percepção do impacto é menor, é normal que tenha um percurso maior a fazer”, explica-se. Mas, numa altura em que a primeira coisa que futuros empregadores e relacionamentos fazem é escrever no Google o nome da pessoa, o impacto na vida de quem é exposto pode ser sísmico e duradouro.
“A pessoa que se expõe e que depois é exposta de forma não consentida a terceiros nunca mais se livra disto. Porque a internet tem esta particularidade: a rapidez com que se espalha e o não controlo que temos sobre onde vai parar a mensagem ou o vídeo que até pode, durante uns anos, estar desaparecido e depois reaparecer. Uma pessoa que viva esta situação terá sempre um medo latente na sua vida, e a longo prazo, de todas as novas situações com que se confronta”, explica Patrícia Mendonça.
No questionário online que serviu de base ao estudo exploratório da tese de mestrado em Ciências da Educação de Patrícia Mendonça, a principal razão para os estudantes universitários inquiridos enviarem nudes foi “estarem numa relação com a pessoa a quem enviaram, sendo a relação caracterizada por respeito”. “Muitas vezes também é motivado por alguém que quer começar a estabelecer relação com o outro e julga que este é um caminho mais fácil de o conseguir”, descreve a psicóloga.
Em 2018, uma meta-análise a dezenas de estudos concluiu que 14,8% dos menores de 18 anos assumem enviar sexts, enquanto 27,4% disseram receber. A publicação no JAMA Pediatrics também salienta que 12% dos adolescentes já enviaram uma mensagem de cariz sexual sem consentimento de outra pessoa. Durante os confinamentos provocados pela pandemia de covid-19, “supõe-se que tenha havido um aumento desta troca de mensagens, inclusivamente nos casais de namorados mais jovens que estiveram separados”, expõe Patrícia Mendonça.
Esta extensão da intimidade física para o online acompanha o aumento do tempo passado em frente a ecrãs e, agora, a redução dos encontros presenciais. Está a “tornar-se um comportamento cada vez mais normalizado”, mas, no estudo exploratório com 525 estudantes universitários de todo o país, maioritariamente mulheres e heterossexuais, com média de idades de 25 anos, metade não teve qualquer “percepção de risco”.
Ao mesmo tempo, o número de pessoas que contactam a Linha Internet Segura da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) tem aumentado ao longo dos anos e durante a pandemia. “Se no ano passado estaríamos a falar de dezenas de pessoas [que procuram o apoio da APAV], este ano seguramente estamos a falar em centenas”, dizia ao PÚBLICO, em Outubro, Ricardo Estrela, que gere uma equipa de cerca de 20 voluntários peritos em áreas como a psicologia, direito e serviço social.
A Polícia Judiciária não respondeu às questões do P3, que pretendia saber se também a Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica registou um aumento de queixas-crime ou de investigações de crimes de devassa por meio da informática durante o confinamento. Também não respondeu sobre se algum dos grupos online estava a ser investigado.
Inês Marinho espanta-se em ainda ter de explicar que o comportamento da vítima não é o que está em causa. “Eu vejo a maior parte das raparigas a justificarem-se e a arranjar desculpas para me explicarem a situação. Dizem coisas como: ‘Ele era mesmo meu namorado’. Não interessa”, exclama. “Quero mesmo virar a história: quero que se chegue a um ponto em que um rapaz não vai partilhar as fotos da namorada porque sabe que isso é horrível e que ninguém vai compactuar. E nós agora estamos a fazer o contrário: estamos a repudiar as vítimas.”