O novo rosto do PÚBLICO
Das várias mudanças gráficas no PÚBLICO, nenhuma foi mais contestada que a saída do Bartoon da última página do jornal. O director, Manuel Carvalho, explica a decisão que tomou.
Inúmeros leitores dirigiram-se ao provedor para manifestar a sua satisfação com o novo grafismo do PÚBLICO. Outros fizeram-no para criticar, por vezes com veemência, a colocação do Bartoon ao lado do editorial (o leitor Victor Antunes ordena-me mesmo: “Manda lá pôr o Bartoon na contracapa”). Francisco Luiz Gerês Pereira, de Vila Nova de Famalicão, fundamenta deste modo o seu protesto: “(…) cometeram dois erros. a) Deixa-nos como se nos faltasse uma perna ou um braço (…) – pois se gosto de mudanças, também espero que estas mantenham algumas características que não façam perder a identidade que legitima a mudança. Compro o PÚBLICO e leio e começo pela última página. Sempre. O Bartoon no meio das páginas do jornal, em vez de o promover, despromove-o. O Bartoon não precisa de estar acompanhado, ele é autónomo, inteligente, gritante. É na última página o seu lugar. b) Além de tirarem o Bartoon da última página, puseram-no em cadeiras de rodas, amputando-lhes as pernas: deixou de ser uma tira e passou a quadrado. Confesso que o tive de ler duas vezes para perceber a estória. “BARTOON de REGRESSO à ÚLTIMA” merece um Manifesto. (…).”
O director do PÚBLICO, Manuel Carvalho, explica a decisão que tomou: “Sabemos que a habituação é um factor crítico na forma como os nossos leitores nos lêem. E antecipámos que a mudança do Bartoon poderia causar alterações de rotinas e, consequentemente, desconforto a alguns desses nossos leitores. Ainda assim, optámos por mudar, essencialmente por uma razão: a visão do país e do mundo expressa nas tiras do Luís Afonso enquadra-se melhor na lógica do espaço de opinião do que na última página, onde normalmente os cartoons são mais lúdicos – em tempos, esse espaço no PÚBLICO era ocupado pelo Calvin and Hobbes, por exemplo.
De resto, o cartoon regressou ao espaço onde nasceu, exactamente com o mesmo formato e até com um posicionamento mais favorável – ao lado do editorial. O que significa, antes de mais, a enorme importância que atribuímos ao protagonista e ao seu autor, que fazem sem dúvida parte essencial do património do nosso jornal.
Queremos por isso garantir aos nossos leitores que esta mudança não significa uma depreciação do valor e significado do Bartoon. Pelo contrário: colocá-lo ao lado do editorial, no espaço nobre da opinião, é uma forma de lhe dar a relevância que sem dúvida merece.”
O leitor Manuel Rodrigues faz a seguinte observação: “(…) Um dos aspectos que me parece ser necessário corrigir no ‘nosso’ jornal é o da insuficiente identificação dos(as) autores/origens dos trabalhos. Dou, como exemplo, o texto sobre a crise dos Media na página 12 do número de hoje (16.11.2020): a D. Maria Lopes é jornalista? É docente ou especialista na área mediática? E onde? Para mim, a referida identificação é necessária e importante. Gostava de saber a opinião do Sr. Provedor sobre este assunto.”
Maria do Céu Lopes responde: “Eu sou jornalista no PÚBLICO desde 1998. E apenas jornalista. (…) O meu perfil está facilmente acessível aos leitores de cada texto, bastando clicar na assinatura. (…).”
Creio que a resposta da jornalista esclarece as dúvidas do leitor. De qualquer forma, o provedor não pode deixar de recordar que nenhuma redacção no mundo tem um especialista para cada área do conhecimento humano: um virologista, um vulcanólogo, um piloto aviador, um egiptólogo, etc... A tarefa do jornalista consiste, antes, em apreender e sintetizar o que dizem os especialistas ou as organizações especializadas (no caso vertente sobre os media) e, sem falsear a informação, publicá-la de modo que ela seja compreensível para o grande público.
O partido da verdade televisiva
Na noite das eleições presidenciais, as três televisões com mais audiência nos Estados Unidos (CBS, ABC, NBC) cortaram em directo o discurso do Presidente Trump, invocando que ele faltava à verdade. Nunca visto. Três semanas mais tarde contam-se pelos dedos da mão as análises e os comentários da imprensa europeia sobre este singular procedimento, assim reduzido a banal acontecimento. Nunca visto, também.
Uma primeira conclusão é possível tirar, já: a do grande embaraço – direi mal-estar – que a decisão dessas televisões provocou no universo dos media do velho continente. Não se aprova, nem se condena. Ora o silêncio nunca é uma tomada de posição, nesta matéria. É apenas uma omissão, envergonhada, acho eu. É claro que o corte no discurso foi noticiado. Mas não foi comentado. Ora cortar em directo um discurso, por muito desonesto e miserável que ele seja, do Presidente dos EUA, não é um problema das televisões, é um problema da liberdade de expressão. Que se goste ou não de Trump, o Presidente legitimamente eleito tinha o direito de falar e os cidadãos a quem ele se dirigia tinham o direito de o ouvir – a menos que os considerem inimputáveis.
Porquê, então, este silêncio, que cheira a envergonhado? Em parte porque a quase totalidade da Imprensa europeia “votou” contra Trump, ainda antes de os americanos terem votado. E, em parte também, pela injustificada deferência com que os europeus olham para as televisões dos EUA.
A primeira questão que se coloca é a de saber se a decisão do corte foi tomada durante o discurso, “a quente” – o que poderia explicá-la. Ora a resposta é que ela foi ponderada. Em 2016, as mesmas televisões tinham transmitido profusamente todos os despautérios proferidos por Trump durante a sua campanha. As diatribes do candidato davam boas audiências, e a aposta dessas televisões era que os eleitores, ao ouvi-las, iriam afastar-se de Trump. O resultado foi o oposto, como se viu. Logo no mesmo ano, as três televisões acertaram uma posição comum. O presidente da CBS, de acordo com J.-P. Marthoz, resumiu-a nos seguintes termos, em declarações públicas: “A passagem permanente de Trump nas antenas era talvez uma coisa boa para as televisões, mas era má para a América.” [1]
Temos, portanto, que as televisões se arrogaram o direito de decidir no lugar dos eleitores entre o bom e o mau, o Bem e o Mal. Fizeram-no ao contrário da CNN (próxima dos Democratas), da Fox (próxima dos Republicanos) e da PBS (pública), que passaram o discurso na íntegra, contraditando-o nos oráculos, e depois comentaram que o Presidente tinha faltado à verdade ou produzira afirmações sem fundamento [2].
Colocam-se, pois, algumas questões para as quais será bom encontrar uma resposta a curto prazo. A partir de que momento o responsável de uma televisão tem legitimidade para silenciar um Presidente? Pode um jornalista interferir na transmissão em directo de acontecimentos com manifesto interesse público? E, na afirmativa, não estará esse mesmo jornalista, em vez de proceder como um observador isento da acção política, a actuar como um agente político que faz prevalecer a sua opinião sobre um acontecimento que, ademais, não comunicou à opinião pública?
Resta saber aonde conduzirá este precedente, não só nos EUA mas também nas outras democracias, de cada vez que as televisões julgarem, a partir de agora, que têm o direito de calar um Presidente eleito, porque, na opinião delas, ele está a faltar à verdade.
[1] Ensaísta, actual director da revista belga Enjeux internationaux e figura influente da Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ)
[2] No nosso universo caseiro e salvaguardando as distâncias, o único caso semelhante de que me recordo ocorreu em 1991. O Presidente Mário Soares queixou-se à Assembleia da República de que a informação da RTP era excessivamente pró-governamental. O então director coordenador do Serviço Público respondeu no ecrã que o Presidente estava a faltar à verdade, intervenção essa que gerou na altura um coro de protestos, ao qual não se juntou o PSD, o partido então no governo chefiado pelo primeiro-ministro Cavaco Silva