Entre cães e gatos, galinhas e chimpanzés há animais imunes e susceptíveis ao SARS-CoV-2
Estudos de cientistas portugueses identificaram animais que serão susceptíveis e outros que podem ser imunes à infecção pelo SARS-CoV-2 e explicam o que separa e une as outras espécies e os humanos.
Joana participou num estudo que identificou várias espécies de mamíferos com potencial de serem infectadas pelo vírus SARS-COV-2. João ajudou a criar um modelo computacional que explica porque é que certas espécies animais, como ratos e galinhas, são imunes ao vírus. Os dois cientistas portugueses trabalham em diferentes instituições nos EUA, mas estão os dois no mesmo barco, a tentar saber mais sobre a relação do novo coronavírus com as outras espécies de animais numa inesperada viagem que se faz a partir do (pouco) que já sabemos sobre o que acontece nos humanos.
Desta vez, foi ao contrário. O email enviado ao PÚBLICO começava assim: “Estou-lhe a escrever para lhe dar a conhecer dois trabalhos sobre covid-19 que, tendo sido liderados por portugueses, podem ser interessantes para partilhar com os leitores do PÚBLICO”. João Rodrigues tinha razão. O assunto – que, já agora, era “Dois artigos por portugueses sobre transmissão de covid-19 entre humanos e animais” – interessava. O investigador português que se encontra a trabalhar na Universidade de Stanford não só expunha a sua iniciativa como a sua generosidade, fazendo referência (aliás, em primeiro lugar) ao trabalho de outra investigadora portuguesa. Por isso, a nossa história sobre a investigação que os dois cientistas portugueses fazem lá fora começa assim, pelo princípio que João Rodrigues, sem querer, sugeriu.
Joana Damas, investigadora na Universidade da Califórnia, em Davis, aparece como autora de um artigo publicado na PNAS que relata os resultados de um exercício que combinou várias técnicas computacionais de análise de genomas e proteínas para prever os animais que podem vir a ser infectados pelo SARS-CoV-2. “O principal resultado do nosso estudo foi a identificação de um alto número de espécies de mamíferos com potencial de serem também infectadas pelo vírus SARS-CoV-2 (responsável pela covid-19) através da proteína ACE2, que é a proteína que o vírus usa para infectar as células humanas”, explicou ao PÚBLICO.
A lista de animais é longa, mas a cientista nota que “as previsões são baseadas apenas em semelhanças de sequência e requerem validação experimental”. Ou seja, é preciso fazer outras experiências e testes para comprovar se estes animais são ou não susceptíveis à infecção. O que o estudo da cientista portuguesa mostra é apenas que podem ser. “O facto de haver potencial para infecção através da proteína ACE2 não quer dizer que estes animais irão apresentar sintomas, já que isso depende de outros mecanismos que não abordamos, por exemplo o sistema imunitário de cada espécie e a forma como reagem a infecção viral”, explica.
Mesmo assim, reconhece Joana Damas, os resultados obtidos podem já ser úteis “na identificação de organismos-modelo para o estudo de infecção por SARS-CoV-2, e espécies que podem servir como reservatórios ou hospedeiros intermediários para SARS-CoV-2 e, portanto, reduzir a oportunidade de um futuro surto de covid-19”.
No caso de João Rodrigues, o artigo científico tem uma versão que já está disponível na plataforma bioRxiv (onde são reunidas pré-publicações que não foram ainda revistas pelos pares) e já foi aceite para publicação na revista PLoS Computational Biology. “Estudámos proteínas de várias espécies animais, mas através de modelação molecular descobrimos várias diferenças a nível da estrutura atómica das proteínas que explicam o porquê de certas espécies animais serem imunes ao vírus e que podem ser úteis no desenvolvimento de fármacos”, resume João Rodrigues. Assim, se Joana Damas apresenta uma previsão das espécies que podem ser susceptíveis ou imunes, o trabalho de João foca-se mais no “porquê” e em perceber por que é que, do ponto de vista bioquímico, apenas certas espécies serão susceptíveis.
O tema é quase o mesmo, mas há ainda mais um motivo para juntar os dois cientistas portugueses na mesma história. Os trabalhos de João e Joana têm em comum a atenção dada a uma importante proteína do SARS-CoV-2, a spike, e ao receptor celular que o vírus usa para infectar as células, a proteína ACE2. Joana Damas refere que no seu estudo foram comparadas as sequências genéticas de 25 aminoácidos que são usados para a ligação receptor-vírus.
“Como sabemos que os humanos são muito susceptíveis a este vírus, a nossa hipótese é de que espécies com sequência proteica semelhante nesses 25 aminoácidos têm um maior risco de serem também infectadas por este vírus. Comparámos então cada uma das espécies com os aminoácidos em humanos e classificámos cada uma de acordo com o risco de infecção previsto, de muito alto a muito baixo”, especifica Joana Damas. Resultado? “Cerca de 40% das espécies que identificámos como tendo potencial de infecção estão classificadas como ameaçadas pela União Internacional para a Conservação da Natureza”, destaca Joana referindo, por exemplo, gorilas e chimpanzés com muito alto potencial de infecção, tal como os humanos.
No nível abaixo, com alto potencial, estão, entre outros, o veado e o golfinho: Mas há mais: em termos de espécies importantes a nível económico, temos o gado bovino, ovelhas e cabras avaliados com um potencial médio e “cuja possível infecção poderia ter implicações epidemiológicas e implicações para produção de alimentos”. É já na categoria de espécies com baixo risco que encontramos também os porcos, o cavalo, o elefante, aves, vários anfíbios e répteis. No fundo da lista, com um potencial de infecção muito baixo, encontramos o corvo ou o jacaré.
Sobre os animais de estimação preferidos dos humanos, a investigadora esclarece que no seu estudo “os gatos apresentam um potencial de infecção médio e os cães têm um potencial baixo”. Os resultados do estudo, aliás, confirmam o que já se sabia sobre estes animais: cães e gatos infectados não apresentam qualquer sintoma ou sintomas muito ligeiros e, embora seja possível que os humanos infectem estes animais (todos os casos de infecção em gatos foram através de transmissão por humanos), o risco de eles infectarem os humanos será extremamente baixo.
João Rodrigues também se dedicou a analisar a interacção entre a proteína spike do vírus e a proteína ACE2 (o tal receptor), mas na sua investigação foram escolhidas cerca de 30 espécies (mamíferos e não só) que a equipa considerou estarem “mais provavelmente em contacto com humanos”. Para explicar como certas espécies de animais parecem ser imunes ao vírus, os cientistas usaram a lógica de um puzzle. Assim, sabendo como são as peças da spike e da ACE2 (as estruturas atómicas das duas proteínas são conhecidas), faltava saber como encaixavam nos outros animais.
“Verificámos que, por exemplo, a proteína S encaixa bastante melhor na proteína ACE2 humana do que na proteína ACE2 da galinha”, conta o investigador. As diferenças encontradas são muito subtis, diz João Rodrigues, mas serão o suficiente para travar a infecção. “Estamos a falar de diferenças pequeníssimas – dois ou três aminoácidos – que fazem com que a interacção entre as duas proteínas seja mais fraca, e que nós pensamos levar a uma menor probabilidade de infecção”.
O trabalho também serviu para identificar variantes na ACE2 que têm o efeito contrário, ou seja, aumentam a interacção entre as duas proteínas. “Estas variantes estão presentes em várias espécies susceptíveis ao vírus, como o furão e o pangolim, mas não em humanos, e podem ajudar a desenvolver medicamentos que impeçam o vírus de infectar as nossas células.”
Os trabalhos de João e Joana centram-se no primeiro passo do processo de infecção. É preciso saber mais do que isso para validar os resultados e rotular esta ou aquela espécie como susceptível. Até porque as previsões podem falhar. “Se previrmos que as proteínas não encaixam bem, provavelmente o vírus nem consegue entrar na célula e faz sentido que possamos dizer que há menos probabilidade de haver infecção. Por outro lado, pode-se dar o caso de o vírus entrar na célula através da proteína ACE2 e depois ser incapaz de se multiplicar. Por isso mesmo, não podemos dizer que, se o nosso modelo prevê um bom encaixe, então o animal é susceptível. Assim sendo, preferimos deixar bem claro que os nossos modelos têm limitações e que os nossos resultados são previsões que têm que ser validadas independentemente por outros cientistas”, sublinha João Rodrigues.
Mas, então, que lições podemos tirar dos outros animais que possam ajudar as pessoas? “Há várias formas de atacar o vírus com fins terapêuticos. Uma delas passa por desenvolver versões artificiais da proteína ACE2 que encaixam muito melhor na proteína S do vírus do que a nossa versão natural. Depois podemos usar estas proteínas artificiais como ‘armadilhas’ para que o vírus fique preso a elas e não consiga infectar as nossas células”, arrisca João Rodrigues, admitindo que os modelos desenvolvidos pela equipa, baseados na proteína ACE2 de cerca de 30 espécies diferentes, possam servir de plano para a construção destas versões terapêuticas da proteína.
Na verdade, os dois cientistas portugueses chegaram a conclusões que podem ter implicações importantes tanto no controlo e na previsão de futuras pandemias como no desenvolvimento de vacinas e fármacos contra coronavírus. Na verdade, há, afinal, muitos motivos para juntar João e Joana, dois cientistas portugueses nos EUA que não se conheciam antes, numa mesma história sobre a pandemia. Como esta.