Todos não somos de mais
Tratar doentes covid e não covid é uma obrigação de todos, não podendo os setores privado e social ser prejudicados nem ter um estatuto privilegiado, relativamente aos hospitais do SNS.
Se há momentos em que se aplica a frase “todos não somos de mais” é seguramente ao tempo atual da pandemia. A inclemência infeciosa, traduzida no número crescente de infeções diárias e de doentes internados em hospitais, ameaça fazer soçobrar o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Situação que levou a que tenha sido decretado novo período de estado de emergência, tomando medidas que, numa espécie de quadratura do círculo, prevenissem o alastrar da infeção com o menor impacto na economia e na vida das pessoas. A controvérsia, inevitável e desejável, está instalada na sociedade mas não irei por aí. Enquanto cidadão e médico em regime de trabalho em exclusividade num hospital do SNS, interessa-me sim contribuir para o encontrar de soluções que permitam tratar com qualidade o maior número possível de doentes covid e não covid, recorrendo a todos os meios disponíveis, do SNS e dos setores privado e social.
Sendo certo que é nos hospitais públicos que se encontram, em quantidade e qualidade, os melhores meios técnicos e humanos para tratar doentes covid, em particular em unidades de cuidados intensivos, não é menos verdade que o mesmo acontece com patologia não covid (doença oncológica, cardiovascular ou neurológica, por exemplo). Não me parece pois aceitável concentrar toda a patologia infeciosa nestes hospitais como vem sendo defendido por alguns. Isto porque, além de impedir o tratamento de outras doenças com elevada morbilidade e mortalidade, seria estigmatizante para os hospitais do SNS verem-se transformados numa espécie de “leprosarias” dos tempos modernos.
Segundo dados do Ministério da Saúde [1], em 2018 existiam, em Portugal, 225 hospitais, dos quais 107 públicos e 118 privados, representando estes dois setores cerca de um terço do total de camas hospitalares. Face a estes dados, não parece aceitável à luz de quaisquer argumentos de natureza financeira, modelo de Saúde, ou outra, que estes setores não sejam chamados a contribuir para a resolução dos problemas de saúde em situação de emergência de saúde pública. A sobrecarga infeciosa numa área já em dificuldade em dar resposta às listas de espera obriga a que sejam encontrados caminhos de colaboração em rede. Ou seja, tratar doentes covid e não covid é uma obrigação de todos, não podendo os setores privado e social ser prejudicados nem ter um estatuto privilegiado, relativamente aos hospitais do SNS.
Não se percebem as razões pelas quais a contratualização com aqueles setores não avança. Não se trata, afinal, dos mesmos grupos económicos a quem foi entregue a gestão privada de hospitais públicos (PPP)? Não são, por este facto, conhecedores dos custos de tratamento de doentes covid e financiados em conformidade nos hospitais públicos que gerem? É ou não verdade que a gestão PPP fez poupar milhões ao erário público? A ser verdade, qual a relutância, e de parte de quem, em contratualizar mais uma patologia?
Não havendo acordo entre Ministério da Saúde e privados, não se entende também que o Governo não faça valer o ponto 3 da base 34 da Lei de Bases da Saúde: “Em situação de emergência de saúde pública, o membro do Governo responsável pela área da saúde toma as medidas de exceção indispensáveis, se necessário mobilizando a intervenção das entidades privadas, do setor social e de outros serviços e entidades do Estado.” No mesmo sentido, o que impede que sejam considerados acordos com hospitais dos setores privado e social possibilitando o aluguer de blocos operatórios e de camas de recobro, permitindo que equipas-cirúrgicas do SNS possam operar doentes nesses hospitais?
A progressão avassaladora da epidemia covid-19 no mundo, Portugal em particular, exige que todos nós, individualmente ou de forma organizada, procuremos soluções no sentido de conter a evolução da infeção, minimizando as consequências sobre a saúde e bem-estar das populações. Saibamos pois colocar o interesse geral acima de conveniências particulares ou de grupo, por mais legítimas que pareçam ser.
[1] Ministério da Saúde (2018), Retrato da Saúde, Portugal
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico