Lisboa e Porto em emergência e desertas: parte II
O cenário é em todo semelhante a Março e Abril, os meses mais silenciosos que as cidades terão vivido nos últimos anos. Quase oito meses depois, Lisboa e Porto voltam a estar despidos de gente, obrigada a recolher-se em casa entre as 23h e as 5h. PSP diz que indicações têm sido cumpridas, mas houve quem neste primeiro dia se tivesse distraído com as horas.
As imagens dificilmente sairão da memória. Uma cidade despida de gente, sem se escutarem idiomas de todas as partes do mundo, sem se sentir o cheiro que vai saindo dos restaurantes. Na primeira noite de estado de emergência, com recolher obrigatório das 23h às 5, é como se os 121 concelhos tivessem recuado a Março: são urbes fechadas em casa, ruas desertas, lojas e restaurantes com cortinas corridas abaixo. É o regresso à cidade em suspenso. É o regresso ao estado de emergência, num dia em que se bateu mais um infeliz recorde: o dia em que mais vidas, 63, se perderam para a covid-19.
Apesar de ter entrado em vigor à meia de noite, os principais impactos do recolher obrigatório imposto pelo Governo mostraram-se nas últimas horas de segunda-feira. Os jantares em restaurantes apressaram-se para se cumprir o horário de encerramento das 22h30; as despedidas abreviaram-se para evitar a circulação na rua na depois das 23h. Nem sempre com grande sucesso.
Sara Pinheiro Nunes tinha ido ao ginásio e jantar fora com uma amiga. Seguia caminho, de mota, até ao hotel que tem no Chiado, esvaziado pela pandemia. “Não há ninguém, ninguém. Vou dormir lá para não ficar sozinho.” Passava já das 23h e, por isso, a empresária de 28 anos foi parada por uma equipa da PSP que fazia uma fiscalização de trânsito junto à Praça dos Restauradores. Ela confessa-se surpreendida. Pela acção de fiscalização e pelo adiantado da hora. A justificação não se enquadra em nenhuma das excepções previstas, como estar de regresso a casa depois de um dia de trabalho ou ir dar apoio a um familiar doente.
Além de proibir a circulação na via pública entre as 23h e as 5h da manhã, o decreto que estabelece o novo estado de emergência impõe o recolher obrigatório aos sábados e aos domingos entre as 13h e as 5h por duas semanas. Para Sara, estes horários “não fazem muito sentido”. “No restaurante, o senhor estava a apressar para tentar fechar às 22h. No supermercado vai ser caótico, sobretudo ao sábado de manhã. Mas temos de ser responsáveis”, atira a empresária, que lembra “os muitos negócios que estão a ir à falência”.
Os carros com dístico TVDE vão parando, assim como os estafetas que levam as refeições a casa. O restaurante onde trabalha Leonor Castelo Branco, em Campolide, faz também entregas ao domicílio até às 23h. Como trabalha, essencialmente, em regime de take-away, e dado o cenário de confinamento domiciliário, a jovem de 25 anos, espera que o negócio se mantenha à tona e deixa os receios de lado — ainda que reconheça que os restaurantes serão um dos sectores mais prejudicados com as restrições à circulação. “Não estou receosa. Já passámos a outra fase de confinamento. Agora vai ser melhor.” Era dali que saía, com destino a casa, no bairro lisboeta de Alfama, quando foi surpreendida pela PSP, que a parou, pediu os documentos da viatura e a declaração da entidade patronal que atesta o motivo que lhe permite circular fora do período de recolher obrigatório.
A Polícia Municipal e a PSP puseram nas ruas de vários pontos da Área Metropolitana de Lisboa “cerca de três centenas” dos seus agentes para fiscalizar o cumprimento dos novos horários de estabelecimentos comerciais, ajuntamentos, consumo de álcool na via pública e uso da máscara quando não é possível garantir a distância de dois metros, diz ao PÚBLICO o porta-voz do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, comissário Artur Serafim. A operação arrancou à meia-noite de segunda-feira e assim se manterá durante o período em que vigorar o estado de emergência.
Medidas têm “fundamento"
Na noite de segunda-feira, na Praça dos Restauradores, foi montada uma operação, já depois das 23h, para aferir os motivos pelos quais os transeuntes circulavam na via pública. A primeira abordagem das forças de segurança, sublinhou o comissário Artur Serafim, é a sensibilização dos cidadãos. “A participação do crime de desobediência é utilizada em último recurso”, explicou. No primeiro dia, não foi registado qualquer crime de desobediência.
É tarde, é certo, está a chegar à meia-noite, e poucos carros descem a Avenida da Liberdade. Transportam uma ou duas pessoas dentro. O mesmo com os eléctricos e autocarros.
A estação ferroviária do Rossio é sobretudo cais de partida para os que querem regressar a casa no final de um dia de trabalho. São trabalhadores da restauração, vigilantes.
Logo após os torniquetes, os agentes da Divisão de Segurança e Transportes Públicos da PSP de Lisboa vão abordando quem chega. Paulo Nobre acabara o turno no Banco de Portugal, na Avenida Almirante Reis, onde é vigilante. Faltam ainda 15 minutos para o comboio das 00h01, com destino a Sintra. Os agentes pedem-lhe a identificação e a declaração da entidade patronal. A estação de saída será a Reboleira, onde vive. Apesar da interpelação dos agentes, Paulo nota que estas são medidas que têm “o seu fundamento”. “Acho até que já vão tarde demais. É o que se pode arranjar.”
Suelen Rodrigues segue para o mesmo comboio, em direcção à Damaia, depois de um dia de trabalho que será o último por pelo menos 15 dias. A brasileira de 38 anos trabalha num dos restaurantes do Mercado Time Out, que encerrará portas a partir desta terça-feira. Em princípio, diz a funcionária, será por duas semanas, mas o futuro é incerto. “Acho que são medidas justas, mas acho que se tivessem sido tomadas no tempo de férias, isto podia ser mais contido”, diz. Os turistas desapareceram das ruas. “Estamos a zeros. É por isso que vamos fechar”, observa.
Apesar de ser notório o conhecimento das restrições em vigor os 121 concelhos onde há maior risco de contágio, há ainda quem seja surpreendido pela abordagem da polícia e não tenha uma justificação-excepção para deslocações em horário do recolher obrigatório — desempenho de funções profissionais como profissionais de saúde e agentes de protecção civil, obtenção de cuidados de saúde, ir a estabelecimentos de venda de produtos alimentares e de higiene, assistência de pessoas vulneráveis, exercício da liberdade de imprensa e passeios pedonais de curta duração são as excepções.
A população, ressalva o comissário Artur Serafim, tem estado a cumprir as regras. “Vim agora de outra zona de Lisboa e os estabelecimentos já se encontravam a encerrar ou totalmente encerrados mesmo antes das 22h. Verifica-se muito pouca afluência de pessoas na via pública e também é quase nula a circulação de carros.” Ainda assim, a PSP continua a ter de dispersar alguns ajuntamentos em “zonas urbanas sensíveis”, como bairros sociais, diz. Na Amadora, há também relatos de ajuntamentos “quase todos os dias”.
Nas cerca de duas horas que os agentes estiveram a controlar as viagens no Rossio, pelo menos dez pessoas não apresentaram uma justificação válida para “furar” o recolher obrigatório. No entanto, puderam prosseguir viagem, com o aviso de que não o devem voltar a fazer fora de horas.
Resistem nas ruas os que estão sem-abrigo, os taxistas, os distraídos e os trabalhadores de regresso a casa ou em período laboral. Resistem os que recolhem o nosso lixo e os que passeiam os cães na madrugada. Resistem ainda os que têm a missão de dar luz e cor a uma época que será, inevitavelmente, diferente. No Largo do Calhariz, na Bica, é quase Natal.
O Porto a recolher-se
No Porto, o fluxo esvaía-se à medida que a hora do recolher obrigatório se aproximava. Algumas pessoas na paragem de autocarro, algumas pessoas a correr para o metro. Um homem a comer, sem pressa, num banco de madeira de uma avenida de granito, a Avenida dos Aliados, a principal do Porto. Um outro a uns metros, de olhos posto no relógio da câmara municipal. A poucos minutos das 23h, desapareceram. Recolher obrigatório, o primeiro da vida de quase todos.
Os carros continuavam, menos, menos. O som dos motores a tornar-se mais audível, como uma transgressão impossível de esconder. Os passos largos dos últimos transeuntes. Dez minutos depois da hora já passava um carro patrulha. Sirene. Um aviso ligeiro. Seria preciso dizer: “Está na hora.” Só alguns teriam motivos aceitáveis para continuar naquele cenário. Só esses deviam continuar a circular.
A acção de fiscalização da PSP incidiu na Baixa, em torno da Estação de São Bento e a Praça de Liberdade. E aí, como haveria de resumir já de manhã o responsável pelas relações públicas no Comando Metropolitano do Porto, António Veiga, “toda a acção decorreu dentro da normalidade”.
Entre as 23h00 e as 5h00, em toda a área daquele comando – Porto, Matosinhos, Vila Nova de Gaia, Gondomar, Vila do Conde, Póvoa de Varzim –, houve um total de sete acções de fiscalização. As diversas equipas não registaram qualquer incidente. Sempre que se revelou necessário, os elementos destacados para o terreno “adoptaram uma postura pedagógica”. “As pessoas estavam a cumprir.”
Àquela hora, saindo da Baixa em direcção à Foz do Douro, apenas um ou outro carro, o som estridente da recolha do lixo, os sem tecto nos seus pedaços de chão, um homem a passear um cão. O Porto recolhido. com Ana Cristina Pereira