A base da pirâmide do emprego científico
Tenho plena noção (e por experiência própria) que esta opinião é fraquíssimo consolo para os candidatos que não foram bem-sucedidos, e insultuosa para os que consideram ter sido mal avaliados.
Estando prestes a tornar-se definitivos os resultados do Concurso de Bolsas Individuais para Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) para 2020 é importante refletir um pouco sobre ele. Desde já, um conflito de interesse: tenho sido membro de painéis da FCT, mais recentemente no de Bioengenharia e Biotecnologia. É sempre uma experiência enriquecedora, a interface online evoluiu imenso, o apoio logístico é excelente, ouvem sugestões de avaliadores, e dão instruções claras. Para quem tem sido muito crítico da agência que, no fundo, é responsável pela política científica portuguesa, neste caso todo o processo parece-me globalmente bem conduzido.
Note-se que tenho plena noção (e por experiência própria) que esta opinião é fraquíssimo consolo para os candidatos que não foram bem-sucedidos, e insultuosa para os que consideram ter sido mal avaliados. Avaliar é sempre desagradável, causa imensos problemas, e quase ninguém quer sujeitar-se a isso se não tiver boas garantias de sucesso. No entanto, é algo essencial, fazemo-lo todos os dias nas mais variadas circunstâncias da nossa vida, e “só” tem de ser feito com rigor e transparência. Achar que o é ou não depende muito da nossa experiência pessoal, e as principais questões, para além de burocracia, erros ou fraudes, são as que uma avaliação por pares sempre suscita.
Descontando a possibilidade de existirem conflitos de interesses não declarados, não só as opiniões de um avaliador podem não coincidir com as do candidato (quanto à metodologia, modelos, hipóteses, interesse, grau de inovação ou exequibilidade da proposta), como é impossível que um painel domine em pormenor toda a ciência envolvida em muitas dezenas de candidaturas, e tendemos a ser mais críticos nas matérias que conhecemos a fundo. Sei que isto não é nada científico, mas a sorte e azar também têm aqui um papel. Em 2020 houve queixas com o atraso na divulgação de resultados, mas, mesmo num ano claramente atípico, os prazos só não foram os habituais porque implicaria duas coisas: encurtar o tempo dado aos painéis, e/ou incluir o sacrossanto mês de agosto nestas contas.
Sobretudo é bom perceber que estas queixas se devem a algo mesmo muito importante: o Concurso de Bolsas de Doutoramento da FCT é tudo o que um concurso estruturante em ciência (ou em qualquer outra coisa...) deve ser. Previsível, regular, com uma dotação e uma mecanística que não têm variado muito ao longo de muitos anos, com diferentes governos. Apesar da situação de pandemia justificar um adiamento, esta nunca foi a regra e, concorde-se ou não com a metodologia empregue, novos candidatos podem começar a preparar-se calmamente a médio-longo prazo, com confiança. Isto é fundamental.
Na verdade, só tenho duas questões de fundo com este Concurso. A primeira é achar que uma taxa de sucesso acima dos 40% é, em abstrato, elevada, e não promove necessariamente a excelência, antes alguma sensação de que o doutoramento por vezes parece um pretexto para ter trabalhadores no laboratório, que deveriam ter um salário por outras vias. O que me leva à outra questão: o Concurso deveria ser para contratos de trabalho. As bolsas tardam em ser relegadas para onde merecem estar: em contexto de iniciação (que um doutoramento não é, mesmo havendo uma “desculpa” académica), ou em trabalhos pontuais de horizonte temporal e quadros de financiamento muito limitados. Se queremos mesmo mudar o paradigma do emprego científico era começar logo aqui, seguindo as normas, por exemplo, das redes de formação avançada europeias Marie Sklodowska Curie (MSCA-ITN).
Mas a questão que tende a escapar à maioria das pessoas é que este é o único concurso fundamental da FCT com estas caraterísticas. Em todos os outros (emprego científico, projetos de investigação, unidades I&D, infraestruturas...), aos problemas típicos de qualquer concurso soma-se a incerteza, a irregularidade, a imprevisibilidade, o alterar de formulários, metodologias e critérios, o arrastar de prazos. E não deve ser dos funcionários, que são os mesmos...
Basta, na verdade, comparar o concurso de bolsas de doutoramento com os Concursos de Emprego Científico Individual para doutorados cujos resultados saíram recentemente (com taxa de sucesso mais uma vez abaixo dos 10%, embora “massajada” de modo a parecer superior, o que é, isso sim, ridículo, pouco sério e mesmo insultuoso), ou de projetos de investigação, que seriam sequências lógicas neste percurso. Uma analogia para isto seria imaginar um nível de ensino exigente, bem organizado e fiável, findo o qual os alunos transitam para o nível seguinte, onde reina um caos sádico. Às expetativas que pareciam prometidas segue-se um turbilhão; é de admirar que se zanguem? Claro que instituições e orientadores devem preparar os formandos para esta realidade, mas a sensação que dá é que se promove ativamente a entrada numa carreira, para depois a limitar.
Como já referi noutras ocasiões, criar quadros altamente treinados sem perspetivas imediatas de emprego pós-doutoramento, que pudessem pressionar o sistema a evoluir, era uma das ideias assumidas pelo ex-ministro José Mariano Gago (1948-2015), grande impulsionador da (ainda) atual política científica em Portugal. Mas o sistema tem de querer mudar, e ter condições para isso. É esta parte que, passadas algumas décadas, nos continua a faltar.
E estou a passar por cima de uma realidade que pessoalmente me preocupa, e que é o doutoramento ser visto, não tanto como uma progressão lógica num percurso, mas enquanto solução imediata de emprego (temporário). Claro que depende muito das áreas, nas de maior empregabilidade até há muito poucos candidatos, dada a procura intensa do mercado de trabalho, e ainda bem. Isto contrasta com outros países para os quais realizo avaliações similares, e a diferença é simples: há outras (boas) opções, e faz o doutoramento quem se quer mesmo valorizar, não porque não pareçam existir alternativas, que tardamos em criar de forma sistemática. Haver pelo menos um período para quem conclui o mestrado pensar e procurar, financiável, aí sim, por bolsas de curta duração nas unidades de I&D, talvez fosse útil.
Quando comecei Biologia (um abraço virtual ao pessoal 1984-89!), havia uma procura grande de professores do ensino secundário, com empregabilidade quase garantida, e um percurso previsível. A investigação era uma incerteza, talvez ainda maior do que é hoje (mas com a vantagem de haver mais lugares de quadro). Será de espantar que muita gente com dúvidas tenha optado na altura pela via do ensino? Ou que, dada a degradação contínua e extremamente pública da carreira no ensino secundário, hoje os alunos com dúvidas escolham investigação porque, apesar de tudo, parecem existir mais oportunidades? Claro que os verdadeiramente motivados seguirão sempre o seu caminho sem ligar a nada disto, mas o corolário é que talvez tenhamos tido bons professores e investigadores potenciais que nunca o foram (e menos bons que o foram...). Para já não falar numa carreira técnica que teria de ser valorizada.
Para que fique claro: não estou, de modo algum, a defender que temos doutorandos/doutorados a mais, porque seria irresponsável. Mas é preciso ver que, para além dos problemas que os doutorados terão de enfrentar, a atual taxa de sucesso também significa que 60% de candidatos a doutoramento todos os anos irá precisar de outras (boas) soluções. E temos de, ou desistir de uma visão que privilegie potenciar o conhecimento (o que não me parece boa ideia), ou saber criar oportunidades sérias e previsíveis para pelo menos alguma desta população altamente qualificada; que não a emigração ou um protelar constante, até que surjam ajustes artificiais, que só voltam a adiar o problema. Um problema que começa, por paradoxal que possa parecer, com um concurso que, sobretudo considerando o panorama que o rodeia, até funciona.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico