Apanhados pelo vírus
O novo livro de divulgação científica de David Marçal (bioquímico) e Carlos Fiolhais (físico), Apanhados pelo Vírus, chega às livrarias portuguesas a 17 de Novembro, numa edição da Gradiva. Aqui pode ler-se a introdução deste livro que, num mundo onde a ciência é ignorada ou pululam os seus inimigos, se coloca claramente do lado da ciência.
Fomos todos apanhados pelo vírus. É verdade que havia uma Conferência TED de Bill Gates, de 2015, e um relatório conjunto da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Banco Mundial, de 2019, para além de várias outras previsões, que alertavam para a possibilidade de uma nova grande pandemia no mundo: “The next big one.” Mas, na Europa, baseados na nossa limitada experiência espacial e temporal, pensávamos que nenhuma infecção grave iria grassar no planeta, com forte incidência no Velho Continente.
Graças às suas projecções mediáticas, tínhamos sabido da SARS – síndrome respiratória aguda severa (SARS, na sigla anglo-saxónica as iniciais são as mesmas: severe acute respiratory syndrome), em 2002-2003; da gripe A ou gripe suína, em 2009-2011; da MERS – síndrome respiratória do Médio Oriente (Middle East respiratory syndrome), em 2012; do Ébola em 2014-2016; e do zika, em 2015-2016. Todos problemas mais ou menos circunscritos e, quando não o foram, como foi o caso da gripe A, nalguns sítios a resposta das autoridades de saúde pareceu exagerada.
Também nos habituámos a viver com a sida – síndrome de imunodeficiência adquirida, que causou 30 milhões de mortos em todo o mundo desde o seu aparecimento em 1981, e nem sequer nos lembrámos que, tal como no caso da SARS, MERS e Ébola, a sua origem é zoonótica, ou seja, trata-se de doenças que inicialmente se transmitiram de outro animal para o ser humano. No caso da sida, a passagem terá sido de chimpanzés para humanos e, com base em dados genéticos, deverá ter ocorrido no Congo belga nos anos de 1920.
Um escritor de ciência norte-americano, David Quammen, escreveu em 2012 o livro Contágio, em resultado dos seus trabalhos de reportagem em vários sítios do mundo onde grassavam surtos virais, no qual falava sobre a SARS, a MERS, o Ébola, etc. Dando voz a vários especialistas, nele aludia às possibilidades de emergência de um novo vírus capaz de infectar e de se transmitir entre humanos. Mas, entretidos como andávamos com as nossas vidas quotidianas, não quisemos saber. Não investimos o suficiente no estudo desses vírus nem dos processos zoonóticos.
Agora, um novo vírus da família dos coronavírus está entre nós. A sua propagação inicial ocorreu a partir da China desde o final de 2019. Foi contido em vários países através de medidas de confinamento, distanciamento social e uso de máscara, e só nos resta esperar que, continuando com a aplicação dos mesmos meios de protecção, os esperados recrudescimentos subsequentes não suplantem as primeiras vagas nos vários sítios do planeta. A nossa vida mudou. A economia está a ressentir-se. A política passou a ter outras prioridades. A ciência virou-se para um novo foco. À ética foram colocados novos desafios. À arte impôs-se um novo tema. A religião foi afectada.
Passados mais de seis meses sobre o começo da epidemia causada pelo novo coronavírus, que em 11 de Março de 2020 se tornou em pandemia, sabemos hoje muito mais sobre a doença do que no seu início. Os primeiros casos reportados na China em Dezembro de 2019 pareciam pneumonias, tendo sido considerados pneumonias atípicas. Vendo bem, havia bastantes semelhanças com a SARS. Era uma espécie de segunda SARS – a sequenciação do vírus realizada logo em Janeiro de 2020 revelou essa forte semelhança – mas a sua capacidade de transmissão entre seres humanos revelou-se bem maior, fruto de algumas diferenças muito relevantes entre os dois vírus. O novo coronavírus não demorou a galgar fronteiras, à boleia das ligações rápidas e frequentes que caracterizam este mundo globalizado. O continente americano – em especial, os Estados Unidos e o Brasil – acabou por ser mais afectado do que a China e os países asiáticos vizinhos. A Europa foi um caso intermédio, com situações particularmente graves na Itália, Espanha e Reino Unido. O mundo é hoje uma aldeia, não apenas para nós, mas também para o vírus, por uma razão muito simples: ele anda connosco.
Toda a humanidade passou a ser cobaia de uma gigantesca experiência não planeada e, por isso, não intencional. Os serviços de saúde redireccionaram boa parte do seu arsenal de meios humanos e tecnológicos para responder ao novo vírus. Apesar disso, em muitos hospitais os meios revelaram-se insuficientes para tratar todos os doentes, face ao grande número de casos simultâneos, e decisões que antes pareciam impossíveis de ocorrer, como escolhas sobre as prioridades nos cuidados intensivos, tiveram de ser tomadas pelos profissionais de saúde. A ciência passou a dedicar a sua maior atenção ao novo mal. Os trabalhos científicos sucederam-se e os artigos contendo os seus resultados multiplicaram-se.
Hoje, continuando a ter algumas dúvidas (Porque há tantos casos de infectados assintomáticos? Quanto tempo dura a imunidade após uma infecção?) sabemos muitas coisas: desde logo que as medidas de isolamento social, o uso de máscara, a higiene das mãos e o arejamento dos espaços interiores são instrumentos poderosos para conter a propagação da doença. O lock-down nalgumas regiões do mundo, a começar logo na cidade de Wuhan, na China, onde o vírus começou, revelou-se bastante eficaz.
Os protocolos de tratamento da doença nos hospitais melhoraram extraordinariamente, uma vez reunidos dados suficientes sobre doentes em todo o mundo. Centena e meia de candidatos a vacina apresentaram-se rapidamente, dezenas deles chegaram aos ensaios clínicos em seres humanos e uma mão cheia atingiu as fases finais. Aprendemos com base na aplicação do método científico. A ciência é e continuará a ser a nossa esperança.
Por outro lado, uma vez que o ser humano construiu um cibermundo, um mundo virtual ao qual a maior parte das pessoas do planeta estão conectadas, além da epidemia chegou uma infodemia, isto é, uma avalanche de informação, que, em muitos caos, talvez mesmo na maioria deles, é falsa. Portanto, há um vírus a espalhar-se e, espalhando-se ainda mais rápido, há também desinformação sobre o vírus. Neste mundo de fake news, de auto-ilusão e de pseudociência, a que alguns chamam mundo da “pós-verdade”, a desinformação campeia: não só sobre o vírus e a doença que provoca, mas também sobre os mais diversos temas das nossas vidas. Numa sociedade que se chama do conhecimento, a crença continua, contra as nossas melhores expectativas, a desempenhar um papel determinante. Quando o ser humano acredita em alguma coisa, tem uma forte tendência para pensar que ela é verdadeira.
Vivemos num mundo onde a nossa actividade é largamente dominada pela ciência, mas também um mundo onde a ciência é frequentemente ignorada e onde pululam os inimigos da ciência. Este livro, colocando-se claramente do lado da ciência, procura apresentar as principais conclusões que a ciência apurou e procura desmitificar os mitos que não são sustentados pela ciência. Na primeira parte, “O que se sabe”, procuraremos apresentar os factos – o que aconteceu no mundo e em Portugal e o que sabemos hoje de mais relevante com base no método científico. Na segunda parte, “Infodemia”, trataremos da desinformação, dos mitos, do que se pensa ser mas afinal não é. Muitas vezes a desinformação é disseminada por entidades que deviam ser fiáveis, como os líderes das nações: é o caso muito claro dos Estados Unidos e do Brasil. Por último, na terceira parte, que intitulámos “Ciência em directo”, trataremos das dificuldades que a ciência tem hoje para chegar ao público de uma forma correcta. Muita gente espera da ciência milagres, soluções completas e instantâneas, quando a ciência, sendo muito poderosa, não pode produzir esse tipo de soluções. Explicamos como funciona a ciência, em especial na área da saúde, e por que razão ela deve ser considerada a nossa melhor esperança. Temos duas alternativas: ou usamos a inteligência de que a nossa espécie é dotada e, com base nela, há razões para ter esperança. Ou não usamos a nossa inteligência e haverá provavelmente razões para desesperar.