Ele caminhou por toda a costa portuguesa numa luta contra o plástico
Durante 58 dias, Andreas Noe, conhecido como “Trash Traveler”, palmilhou todo o litoral de Portugal continental para alertar contra a poluição nos oceanos e praias. Depois de mais de 1000 quilómetros de plastic hike, deixa o aviso: o importante não é limpar, é mudar os hábitos de consumo.
Em cinco minutos, encheu dois sacos com pedaços de plástico encontrados entre os rochedos de uma praia junto à foz do rio Neiva. “Teria enchido camiões inteiros numa hora.” Ainda estava na primeira semana de caminhada ao longo da costa portuguesa e deparava-se com um cenário “absolutamente insano”. Uns dias depois, entre Mira e a praia da Tocha, no meio de um nevoeiro cerrado, Andreas ia ouvindo o bater das ondas, enquanto caminhava ao longo de um cordão infinito de “garrafas de água sobre garrafas de água”. “Estava chocado. Para mim, aquilo parecia aquelas fotografias loucas tiradas na Ásia que usamos sempre como exemplo [para o problema do plástico].”
Não é preciso ir ao outro lado do mundo. É nas praias mais selvagens e remotas, que damos por bálsamos de natureza (quase) intocável, que, paradoxalmente, o problema da poluição do plástico nos oceanos e praias se torna perene. Ali não chegam os camiões de limpeza municipais, nem as acções de voluntariado.
Na praia da Bordeira, em Aljezur, Andreas Noe criava um museu nacional “sobre o que estamos a fazer com o nosso planeta”. Entre aquela imensidão de areia, peneira-se o futuro: “ilhas e ilhas inteiras” de minúsculos pedaços de plástico. O “verdadeiro perigo” não são os grandes objectos a dar à costa, mas a degradação dos mesmos em microplásticos, nocivos para os ecossistemas e praticamente impossíveis de limpar. Daí o museu. “Assim toda a gente entenderia, porque temos de recusar os plásticos de utilização única.”
É por isso que Andreas Noe, alemão a viver em Portugal desde 2017 e há um ano dedicado a alertar para o problema nas redes sociais como Trash Traveler, decidiu lançar-se num “desafio louco”: de 15 de Agosto a 11 de Outubro, percorreu todo o litoral de Portugal continental a pé, de norte a sul, sem um único dia de pausa. Contas feitas, foram 1150km palmilhados em 58 dias, entre o rendilhado da costa e as acções de limpeza de praia organizadas em conjunto com entidades locais. Foram recolhidas 1,6 toneladas de lixo, incluído 752 máscaras.
Mas o mais importante, frisa, não é a quantidade de plástico recolhido ao longo da iniciativa, nem as acções de limpeza de praias. “Tem que ver com uma mudança nos nossos hábitos e mentalidade.” Tanto que deixou de recolher tanto lixo ao longo do caminho e mudou a forma como comunicava o projecto. “Não me deixava feliz que me viessem agradecer por limpar as praias. Seria muito, muito melhor que toda a gente viesse dizer: ‘Obrigado por me alertar [para o problema] e fazer-me pensar em mudar.’”
Para Andreas, é “muito perigoso focarmo-nos apenas em limpezas de praias”, porque criam uma falsa sensação de dever cumprido e “consciência limpa”, sem levar a uma real mudança de comportamento, tanto por parte de quem participa como das empresas que, cada vez mais, patrocinam acções semelhantes. As iniciativas são importantes, mas principalmente como forma de “educar e mostrar às pessoas o que existe nas praias”. Deve ser uma semente para algo mais profundo e não um fim em si mesmo.
Uma “caminhada esmagadora” que quase o fez desistir
Andreas confessa agora, de regresso a Peniche, que, no início, estava “com medo” do desafio a que se tinha proposto. Nunca tinha feito muito mais do que um dia de caminhada. Como é que “o corpo ia reagir” a 58 dias ininterruptos a andar a pé de areal em falésia, cerca de 20km por dia, ao longo de toda a costa portuguesa? E ainda as acções de limpeza de praia com várias entidades e voluntários ao longo do caminho, mais as publicações no Instagram, as entrevistas e os encontros com organizações e empresas.
“Tornou-se uma caminhada esmagadora, com tantas tarefas que, às vezes, já nem conseguia aproveitar a costa”, recorda. Da Foz do Arelho até Setúbal teve sempre um grupo à sua espera no final da caminhada para mais um encontro e limpeza de praia. “Todos os dias eram absolutamente rock & roll, foi muito bonito.” Mas depois vieram os infindáveis areais da Comporta até Sines. “Foi a primeira vez que estive sozinho uns dias e com tempo para processar tudo o que tinha acontecido no último mês, para acalmar um pouco.”
E, de repente, tudo começou a pesar. Em Vila Nova de Milfontes esteve a ponto de desistir. Atravessou o rio a nado sobre a prancha de surf e, quando chegou à outra margem, recusou-se a caminhar mais naquele dia. Tinha feito metade do trajecto planeado, por isso teria de caminhar ainda mais nos dias seguintes para recuperar os quilómetros perdidos. Mas, e se fizesse batota? Foi Gonçalo Lemos, o fiel motorista e braço direito de toda a jornada, quem convenceu Andreas a regressar no dia seguinte exactamente ao lugar onde tinha parado e recomeçar. “Ajudou-me a superar aquele desafio e depois disso sabia que faltavam apenas 15 dias. Tinha de fazer tudo.”
Para Andreas, o projecto só seria “especial” se chegasse ao fim. Sem pausas e com algum sofrimento. “Quero sempre fazer algo extraordinário ou um pouco mais louco”, admite. “Acho que se torna mais especial, se tiveste de sofrer para concluir alguma coisa.” É um feito, uma conquista, um desafio concretizado. E uma forma de provar a si mesmo que era capaz de fazê-lo, mesmo sem os suplementos vitamínicos ou proteicos “que o marketing quer que acreditemos que precisamos” ou sapatos especiais para caminhar. Fez mais de mil quilómetros com os ténis de sempre, sem bolhas ou lesões graves. E agora quer remendar os buracos, colocar umas solas novas e continuar a usá-los noutros projectos, como forma de mostrar que é possível consertar as coisas e prolongar a sua vida útil, evitando criar mais desperdício.
Um documentário e uma exposição
Cumprir um “desafio louco como este” é também uma forma de chamar mais atenção para o problema. Muitas pessoas reconheceram-no ao longo do caminho. “Houve uma criança que veio a correr de longe na minha direcção para me dar um pedaço de plástico.” Uma família deixou-lhe sacos com o plástico que tinham recolhido junto à autocaravana. “Acho que sou a única pessoa no mundo que fica contente por encontrar sacos de plástico em frente a casa”, ri-se. “Esses momentos fizeram cada metro, cada sofrimento valer totalmente a pena.”
Ao longo do caminho, Andreas Noe encontrou-se com mais de uma centena de organizações não governamentais e entidades locais e serão elas a base do documentário que a equipa que o acompanhou ao longo da jornada (Camera with No Name) irá lançar em 2021. “No início, pensava que seria mais um documentário de aventura, mas vai ser focado no lixo, nas pessoas que se importam com o meio ambiente e que trabalham e contribuem a vida inteira para combater este problema.” O objectivo, desvenda, é mostrar que “é possível resolvê-lo enquanto comunidades, com as pessoas a trabalhar em conjunto”.
A estreia do documentário está marcada para o lançamento de outra iniciativa, prevista para Junho do próximo ano: uma exposição com obras de arte criadas a partir do lixo recolhido ao longo da plastic hike, por dezenas de artistas locais (para já, estão confirmados 20, mas Andreas acredita que o número pode chegar a 30). O local ainda não está confirmado, mas a exposição incluirá ainda excertos do documentário e algumas das músicas criadas pelo alemão ao longo do caminho. Afinal, foi com canções sobre lixo que a aventura do Trash Traveler começou, há pouco mais de um ano, depois de se despedir do emprego como consultor na área da biologia.
A seguir, Andreas já planeia uma segunda edição do projecto, de novo ao longo de toda a costa, mas sobre rodas, para pequenos eventos locais sobre a iniciativa, o documentário, workshops e debates com as diferentes entidades e artistas. E, sim, haverá nova caminhada, “com sorte depois de tudo isto ou talvez em 2022”.