O Presidente da República, o Orçamento do Estado e o Bloco Central
Que o Presidente tenha ideias claras sobre a arquitetura do regime parece-me correto. Que o Presidente alerte para a importância de certos momentos da vida coletiva, como é caso da aprovação do OE2021, parece-me altamente louvável. Que o Presidente se pronuncie sobre concretas opções de alianças partidárias e sobre o sentido do voto dos partidos perante documentos concretos, parece-me absolutamente desastrado.
Descontemos o último mês que tem sido uma sucessão de infelicidades! Eu sou daqueles que genuinamente aprecia o modo como o atual Presidente da República tem exercido o seu mandato. Olhando para a história da chamada 2.ª República, facilmente verificamos que, apesar da estabilidade do texto constitucional nesta matéria (com exceção da revisão de 1982), os mandatos presidenciais foram todos diferentes, variando sobretudo com a personalidade política e pessoal de cada titular do cargo. E Marcelo não foi exceção.
A sua magistratura tem-se caraterizado por uma original leitura da margem de intervenção do Presidente, assente numa presença constante no quotidiano político, curiosamente numa lógica de não confrontação com outros poderes do Estado, maxime o Governo, e num estilo pessoal inconfundível. Quase todos os comentadores prognosticaram que esta forma de entender a magistratura presidencial lhe acarretaria um grande desgaste e depreciação da imagem política. A presença constante, diziam, levaria a que, quando o Presidente necessitasse de intervir em momento difícil, ninguém o escutasse. Enganaram-se redondamente! Pelo contrário, a estratégia presidencial conduziu à acumulação de um imbatível capital político, sobretudo para um Presidente vindo do seu espectro político. E este capital reverteu, em minha opinião, em benefício do sistema político.
Não temos de concordar com todos e cada um dos seus atos. Nem todos nos revemos, por certo, numa ou noutra intervenção do Presidente. Há selfies a mais? Talvez! Todavia, globalmente, Portugal ganhou com Marcelo Rebelo de Sousa na Presidência. Não só pela capacidade de representação internacional do País, não só por dispor naquele alto cargo de um político profundamente conhecedor do meio que o rodeia e dos seus protagonistas, não só pela capacidade sobejamente demonstrada de estar permanentemente bem informado, não só por muitas intervenções oportunas, não só pela sua reconhecida probidade pessoal. Principalmente porque estabeleceu uma relação de proximidade com os cidadãos anónimos, diretamente e através dos meios de comunicação social ou redes sociais. Principalmente porque soube revelar-se um homem de carne e osso, com problemas e desejos à altura das pessoas comuns. Principalmente pela sua generosidade e permanente disponibilidade. Também porque soube criar um ambiente de não crispação política, em particular na sua relação com o Governo (e não podia ter encontrado melhor parceiro para a dança do que o atual primeiro-ministro), sendo que a generalidade das pessoas não aprecia quezílias institucionais e birras pessoais. De tudo isto resultou um exemplo que provocou efeitos de imitação noutras instâncias do Poder. Sobretudo resultou uma credibilização do Poder face ao detentor da soberania, que, em regimes democráticos, é o conjunto dos cidadãos, ou seja, o povo.
Num passado não muito longínquo, o Poder credibilizava-se aos olhos do povo pelo afastamento, pela sacralização e pela liturgia. Hoje, nas sociedades ocidentais abertas, em que tudo é questionado, às vezes com critério e outras vezes nem por isso, a credibilização passa pela proximidade, transparência e comunicação. Os quatro anos e meio de mandato do Presidente da República têm revelado uma interpretação extremamente feliz destes valores e daí os avassaladores sinais de aprovação evidenciados por praticamente todos os estudos de opinião. O PR contribuiu para criar nos cidadãos a ideia que podem questionar diretamente o Poder e, por essa via, influenciá-lo. Criou a perceção de que cada um pode, mesmo que pouco, ser parte ativa no exercício do Poder. A presidência popular que Marcelo tem interpretado é o melhor remédio para a demagogia populista que temos visto noutras paragens. Perguntar-se-á, o sistema mudou? Assistimos a uma nova relação entre governantes e governados, a um acréscimo de respeitabilidade da classe política na consideração dos cidadãos? Infelizmente, a minha resposta é negativa, mas o PR só pode fazer a parte que lhe cabe. Muitas outras reformas são necessárias para alterar globalmente a situação. Mas esse não é o tema de hoje.
O quadro muito positivo que acima tracei está, nos tempos mais recentes, a dar preocupantes sinais de adulteração. E alguns destes sinais surgiram a propósito da excessiva e porventura pouco cautelosa intervenção do Presidente no processo negocial de elaboração e aprovação do Orçamento do Estado para 2021, no presente quadro de governo minoritário. Não que o assunto não devesse merecer a atenção e acompanhamento do Presidente da República. O OE2021 é um documento da máxima importância na atual conjuntura de crise sanitária, económica e social. Tudo o que o País menos necessita é adicionar-lhe uma crise política, que inevitavelmente surgirá, mais extensa ou menos, com a reprovação do OE. Mesmo em situação de normalidade, a não aprovação de um Orçamento do Estado provoca uma enorme perturbação e várias ondas de choque. Acresce que o OE2021 é a primeira peça relevante do complexíssimo puzzle do combate à presente crise e há de estar em consonância com todos os restantes instrumentos que se lhe seguirão. A não aprovação tempestiva deste OE será um passo no adiamento das necessárias medidas de combate à crise. Para mais, Portugal vai iniciar no próximo semestre a presidência da União Europeia e será altamente perturbador, quer na frente interna, quer na frente europeia, que a questão orçamental não esteja resolvida.
Sendo o OE2021 um documento da máxima importância, o problema é que o Presidente se imiscuiu diretamente no processo de negociações partidárias com vista à sua viabilização. Como é sabido, o Governo tomou a opção de negociar o OE com os seus parceiros de esquerda, afastando explicitamente acordos ao centro com o principal partido da Oposição. É uma opção legítima – como legítima é a sua crítica – e anunciada em tempo oportuno. Durante a fase negocial, vários protagonistas acusaram o Governo, com ou sem razão, de fazer chantagem política e de revelar pouca abertura para cedências. Ora, neste quadro de disputa partidária, o Presidente entendeu por bem entrar no jogo, fazendo coro com o Governo. E fez várias declarações públicas, dizendo que achava muito bem que o OE fosse aprovado com os votos da esquerda, que os partidos da esquerda tinham até o dever de viabilizar o orçamento (mesmo sem o conhecerem …) e que um acordo com o PSD lhe parecia muito mal, porque seria saudável para o regime que houvesse alternativas políticas nítidas, uma à esquerda e outra à direita. Por fim, e de forma manifestamente atabalhoada e pouco coerente, também disse que achava que o PSD devia viabilizar o OE, a exemplo do que aconteceu na década de 90 do século passado.
Que o Presidente tenha ideias claras sobre a arquitetura do regime parece-me correto. Que o Presidente alerte, em devido tempo, para a importância de certos momentos da vida coletiva, como é caso da aprovação do OE2021, parece-me altamente louvável. Que o Presidente se pronuncie sobre concretas opções de alianças partidárias e sobre o sentido do voto dos partidos perante documentos concretos, parece-me absolutamente desastrado.
Vale a pena abordar a opção tomada pelo Governo de negociar à esquerda, tentando ressuscitar a “geringonça". Como observador do sistema político, entendi a criação da “geringonça” como uma alteração estrutural das relações partidárias, com vários méritos. Há quem pense que se tratou apenas de oportunismo político com vista ao exercício do poder. Não negando que possa ter havido alguma dose de oportunismo, parece-me que a criação da “geringonça" teve um alcance bem mais largo, ao criar um espaço comum potenciador de alargamento de influências, sobretudo por parte do Partido Socialista. Claro que todos os parceiros almejaram crescer em prejuízo dos demais, mas nem todos estariam nessa posição… Acresce que retirou do gueto político em que se encontrava cerca de um milhão de eleitores, ou seja, quase 20% do eleitorado, o que, do ponto de vista do sistema democrático, só pode ser considerado positivo.
Mas se a “geringonça” se revelou bastante eficaz no momento de recuperação de rendimentos e sua redistribuição, já se revelou inconsequente no desenhar de uma política de desenvolvimento. E a verdade é que, passados três exercícios orçamentais, o seu programa estava esgotado, o que foi sublinhado por diversos observadores. Lá se manteve até ao final da legislatura, causa honore. Após as eleições legislativas, e apesar dos resultados destas, nenhum dos partidos teve ânimo para reeditar a solução política anterior. Pela razão simples de que as causas comuns estavam esgotadas, já não havia inimigo externo que forçasse o entendimento e vinha à tona a diversidade de opções ideológicas e políticas sobretudo entre o PS e os demais parceiros. A “geringonça” estava comprometida, com certidão de óbito passada.
Eis senão quando, a meio da crise sanitária, económica e social, o primeiro-ministro sentiu a necessidade de um apoio parlamentar mais efetivo e, em vez de olhar para a frente, olhou para trás, decidindo virar-se de novo para os seus antigos parceiros. Só o futuro dirá se foi mera manobra tática ou não. Mas pensar que a resposta à crise que nos afeta, de profundidade ainda por descortinar, poderá vir de uma tal aliança política é enormemente ilógico. A resposta à crise económica e social vai obrigar a medidas estruturais de fundo e não a meras panaceias de curto prazo. Serão necessárias intervenções cirúrgicas e não pensos rápidos. Ora está mais que visto que PS, Bloco de Esquerda e Partido Comunista não se entendem em questões de fundo, pela simples razão de terem visões e opções inconciliáveis. Também a posição relativa dos partidos dificulta enormemente o entendimento. BE e PCP, como, aliás, outros à direita, são partidos focados em nichos do eleitorado, mais ou menos encerrados em causas de minorias ou de fação, agarrados às suas bases de apoio, com vocação para posições sectárias de que depende a sua sobrevivência e relativo crescimento. Não têm apetência para apresentar uma proposta global, que atenda aos interesses da grande maioria da população, aceitando dirimir os indispensáveis conflitos de interesses, nem estão em condições de apresentar uma tal proposta.
Ora, no presente momento de profunda crise, esta só pode ser ultrapassada por uma aliança social o mais vasta possível, que implique todo o aparelho produtivo, todos os parceiros sociais e a Administração Pública. Por exemplo, é um erro capital, no presente momento, sublinhe-se, pensar em elevar rendimentos sem tratar de saber se há quem os pague, a menos que se ache que se devem elevar salários à custa de mais endividamento púbico e privado. A própria resposta à crise sanitária está a ser condicionada pelo namoro à esquerda, haja em vista o preconceito ideológico que BE e PCP têm face a tudo o que não seja público. Que se reforce o SNS, muito bem. Que se prescinda da colaboração do setor privado da saúde para ajudar a atalhar problemas imediatos de enorme gravidade, muito mal. Ai do Governo se desse esse passo. Seria certo e sabido que deixaria de ter apoio para aprovar o OE. E, todavia, na hora que passa, todos os interesses têm de ser considerados de forma equidistante e integrados num todo coerente, sob pena de ficarmos manifestamente aquém do desafio com que somos confrontados.
Pensar que a resposta política à gravíssima crise sanitária, económica e social está na ressurreição da “geringonça” é não perceber a dimensão da crise e dos desafios que ela está a colocar e continuará a colocar. O que se torna imperioso é precisamente não adotar uma visão de fação, mas congregar esforços da enorme maioria dos atores políticos, económicos e sociais, é construir uma solução centrada na enorme maioria do eleitorado. Não vivemos tempos normais, em que cada força política se possa dar ao luxo de colocar o seu interesse acima do interesse geral ou em que se tenha que obedecer aos cânones do politicamente correto. É indispensável que, por uma vez, os políticos ouçam os governados, as suas organizações, as empresas, trabalhadores, agentes sociais e culturais e cidadãos comuns não comprometidos com fações. Se tal acontecer, julgo que terão uma grande surpresa. Ninguém aprecia discussões estéreis, polémicas forçadas, desperdício de recursos e de energia por causas fúteis ou para satisfazer pequenas clientelas. Este rassemblement exige um sólido entendimento político que comprometa os partidos que representam as grandes opções do eleitorado e não pequenos nichos, uma espécie de compromisso histórico que envolva as duas principais forças políticas, PS e PSD, uma solução que assente em 2/3 do eleitorado e não que seja condicionada por 15%.
Como compreender que, neste cenário, o PR opte por apoiar a solução à esquerda e repudie, como o fez, com belos argumentos de filosofia política, o entendimento dos partidos centrais? Compreender, compreende-se! A política portuguesa tem sido dominada por um bloco central suave, light e não assumido, assegurado pela feliz coabitação entre PR e Governo. Aliás, feliz e inteligente, em minha opinião (é o que alguma comunicação social chama o bloco central de palácios, Belém e São Bento), e de que ambos têm beneficiado largamente. Faz sentido que o Presidente tema que um entendimento entre os partidos centrais tenha por consequência uma brutal redução do seu espaço político, que receie transformar-se em mais uma voz apenas ou em dispensável corta fitas e promotor de selfies. Mas pode estar tranquilo porque esse entendimento terá sempre um parto muito difícil e verdadeiramente só terá justificação num cenário absolutamente anormal, como o presente. Ironicamente, Marcelo Rebelo de Sousa é, porventura, o único político que pode desbloquear o sistema e ser artífice do compromisso histórico a que acima aludi. Assim o queira. A primeira condição é que recupere rapidamente a “forma” e cesse a delapidação do seu capital político que se registou no último mês, de forma a chegar à eleição presidencial que se avizinha em posição reforçada. Reeleito e relegitimado, poderá então patrocinar uma nova solução política que incorpore as grandes tendências do eleitorado e chamar à razão os seus principais intérpretes. Reeleito e relegitimado, caber-lhe-ia igualmente assegurar que os restantes partidos não fossem simplesmente esquecidos, podendo o PR constituir-se como um garante de tratamento equitativo das diversas opções. Compromisso histórico entre os partidos centrais não tem que ser sinónimo de abuso de poder e de rejeição de minorias.
Trabalhos de Hércules? Talvez! A hora presente não exige menos e a Política é a arte de tornar possível o que é necessário.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico