Mário Laginha e Victorino d’Almeida sentaram-se ao mesmo piano para lançar o Festival CriaSons
Qual é o peso dos compositores portugueses vivos nos jovens músicos? A terceira edição deste festival dedicado à música erudita, que começa a 12 de Novembro em Lisboa, quer explorar a influência do jazz e da improvisação na criação contemporânea.
Não contámos os segundos, mas o momento musical improvisado esta manhã no foyer do Teatro Nacional de São Carlos, com António Victorino d’Almeida e Mário Laginha a tocarem o mesmo piano a quatro mãos, ultrapassou os 17 minutos. Os dois compositores não sabiam se conseguiam improvisar mais de dois minutos, mas tinham prometido mostrar como a partir de uma nota errada se pode fazer uma modulação. A brincadeira, mais ou menos séria, serviu para apresentar o tema da terceira edição do Festival CriaSons — a influência do jazz na música erudita. Houve muitas palmas no final, talvez também pela fome de concertos em tempos de pandemia.
“Mais do que nas edições anteriores, a programação tem uma vertente que tem a ver com a improvisação. Temos quatro compositores que usam muito esta perspectiva de ligação de estilos diferentes, mas também o jazz”, disse Brian MacKay, director deste festival dedicado à criação de música erudita e à sua escuta ao vivo que vai decorrer no teatro de ópera lisboeta nos próximos meses.
A edição de 2020 do Festival CriaSons estrutura-se à volta de uma programação pensada por cinco compositores residentes — além de Victorino d’Almeida e Laginha, foram também convocados Carlos Azevedo, Tiago Derriça e Pedro Caldeira Cabral –, que naturalmente espelha os seus interesses e influências pessoais, ao mesmo tempo que estabelece pontes com cinco criadores mais novos. “Os jovens compositores emergentes têm a oportunidade de criar uma nova obra em conversa com um compositor residente. Não é uma relação de professor-estudante, mas mais de mentor, em que há uma troca de ideias e influências”, explica Brian MacKay ao PÚBLICO, acrescentando que os jovens compositores foram escolhidos entre 50 candidatos. O júri, composto pelos compositores residentes e pelo director do festival, estabeleceu depois o match entre os cinco pares de consagrados e emergentes.
No dia 12 de Novembro, Victorino d’Almeida propõe três das suas “suites teatrais”, composições especialmente feitas para peças de teatro, neste caso de Tchékhov, Eça de Queirós e Georges Feydeau, enquanto Daniel Davis (Caracas, 1990) vai apresentar Between a Man a Butterfly, uma obra para violino, violoncelo e piano. Quase um mês depois, a 3 de Dezembro, Mário Laginha aborda as suas Histórias Muito Curtas, peça para piano, bateria e ensemble, mas também obras Ligeti e Luís Tinoco, ao mesmo tempo que Francisco Fontes (Braga, 1993) estreia De Quantas Cores se Matiza o Fado. A 21 de Janeiro é a vez do par consagrado/emergente Carlos Azevedo/Luís Salgueiro, num programa que inclui obras para saxofone e vibrafone dos dois compositores, uma sonoridade pouco usual, mas também peças de Tinoco, Telmo Marques e Eugénio Rodrigues; a 9 de Fevereiro, Tiago Derriça selecciona Haydn e Ravel para falar das influências na sua música de câmara para cordas e piano, enquanto João Fonseca e Costa estreia Pérolas do Atlântico, peça para quarteto de cordas e piano. O festival encerra com o par residente/emergente Pedro Caldeira Cabral/Vítor Castro num programa dedicado à guitarra portuguesa e às cordas, com obras de Alejandro Erlich, Carlos Paredes e, claro, dos próprios.
O aperitivo musical que serviu para apresentar o festival com “dois dos maiores improvisadores do país”, nas palavras do director, permitiu também discutir o papel da improvisação e a sua influência na criação com os dois compositores. “A capacidade de improvisar vem com a prática. É preciso ganhar alguma destreza mental e física para conseguir materializar no momento as ideias musicais que se têm”, afirmou Mário Laginha. “Temos ambos formação clássica, mas eu diria que o António é mais abrangente porque ele consegue improvisar a partir de Beethoven!”, prosseguiu o compositor e pianista, para logo o maestro retorquir: "Só se Beethoven não estiver presente e porque ele é surdo.”
No improviso do São Carlos, houve, porém, um truque sugerido por Laginha: ambos começaram a tocar só com uma mão. “Não houve mais nada. O improviso pode ter estrutura, mas neste caso não tinha.”
“Tocar com uma mão levou-nos imediatamente a uma forma ‘contrapontística’, de repetir o tema, quase como um fugato, quase como uma paródia de fuga”, comentou Victorino d’Almeida. “Na improvisação quem pensa são os dedos.” No final, também andou por lá o vira do folclore português, uma memória de um encontro entre os dois no Minho.
Para Laginha, a improvisação é sinónimo de uma liberdade que pode trazer surpresas. “Às vezes no acto de compor ando às voltas e a improvisação permite dizer: ‘Gosto disto, vou repetir.’”
Os dois compositores residentes presentes esta manhã no São Carlos ainda não se encontraram com os seus jovens mentorandos, que têm sido bastante autónomos. “[Isto] não é um curso de composição, nem estamos a ensinar nada”, afirmou Victorino d’Almeida. “O Francisco Fontes está a estudar em Londres e disse que tem ouvido muito a minha música, mas só vamos ver-nos fisicamente em Novembro”, contou Laginha. "O que vem aí, não faço ideia.”