Jorge Torgal: “O Governo devia ter coragem forte para fazer um plano de Inverno não centrado na covid”
Jorge Torgal, médico especialista em saúde pública, frisa que “o mais preocupante são as outras patologias sem resposta” e considera que Marcelo foi “extemporâneo” e “exagerado”.
Jorge Torgal, membro do Conselho Nacional de Saúde Pública (CNSP), que se reúne na sexta-feira, defende testes rápidos na triagem de doentes nas urgências e testagem regular a funcionários dos lares. Sobre esta nova reunião diz que apenas foi marcada porque “a deputada Catarina Martins” falou nisso e realça que a situação da pandemia é hoje “muito boa” em Portugal, em comparação com Março. Pode ouvir esta entrevista PÚBLICO-Renascença esta quinta-feira às 23h.
Em Março, o Conselho Nacional de Saúde Pública (CNSP) defendeu que não era preciso fechar as escolas. Agora o Governo está a fazer tudo para não as fechar. Acha que o tempo deu razão ao CNSP e que na altura a posição foi mal compreendida?
Na altura, o Governo fez uma pergunta singela: deve-se ou não fechar as escolas? Perante esta pergunta, o CNSP por unanimidade entendeu que não havia razão para fechar. O Governo decidiu de outra maneira, mas acompanhou esse encerramento de todo um conjunto de medidas. Uma das objecções para o CNSP era as consequências sociais de fecharem as escolas. O Governo ponderou as consequências sociais e tomou um conjunto de medidas. Hoje, as circunstâncias são muito diferentes. Primeiro, conhece-se muito mais sobre a pandemia. Isso é fulcral para a tomada de decisões. Em segundo lugar, vemos hoje que a epidemia não tem as consequências que se presumia que tivesse nessa altura. Há que tomar medidas consequentes com gravidade da pandemia e o seu impacto na população portuguesa. Acho perfeitamente correcto que hoje o Governo não queira fechar as escolas.
Se em Março se tivessem feito 30 mil testes por dia como agora (faziam-se 800), não estávamos a apanhar tantos casos como agora estamos a apanhar?
Não, não tínhamos. A epidemia estava a chegar a Portugal e estava a difundir-se. A razão de se fazerem testes hoje é completamente diferente da daquela altura. Hoje, fazem-se testes de rastreio a populações que não têm sintomas, ou porque tiveram contactos. Em 10 de Abril, fizeram-se 10.121 testes e houve 1516 positivos, o que dá uma taxa de positividade de 15%. No dia 14 de Outubro, fizeram-se 30.366 testes e 2072 positivos, o que dá uma taxa de 6,8%.
Isso significa que a situação está a melhorar?
Revela várias linhas de abordagem. Primeiro, que a epidemia está muito mais difundida do que no início. Segundo, que hoje sabemos que a larga maioria das pessoas que estão infectadas não tem doença. A maior parte dos testes é a pessoas assintomáticas. Noventa por cento das pessoas infectadas não tem doença. Mostra que a epidemia é preocupante para um certo segmento da população.
Os mais idosos ou com mais problemas de saúde?
Todos os dados mostram que são os mais idosos a serem afectados com gravidade. São os que sofrem mais as consequências da epidemia, mas será a covid muito grave? A covid é muito grave na medida em que vai fazer com que aqueles que têm outras patologias venham a falecer por via deste conjunto. Os outros têm doença pouco grave e mortalidade muito baixa. Para mim, a situação está muito melhor hoje do que estava no início da epidemia, olhando numa perspectiva global. Na altura, não estávamos bem preparados do ponto de vista tecnológico. Ainda se seguia uma via terapêutica que agora se modificou e que nessa altura exigia mais meios técnicos. Hoje, sabe-se que não é ligar o doente ao ventilador como acontecia. Hoje sabemos melhor como prevenir a infecção e defender as pessoas. Sabemos melhor como a infecção se transmite na comunidade. Há todo um conjunto de noções que nos levam a ver que a situação em Portugal é boa, diria mesmo muito boa, se olharmos para os outros países da Europa com que nos comparamos por outras razões. Portugal tem uma mortalidade de 217 casos por milhão de habitantes, a Bélgica tem 904 casos, a Holanda tem 397, a Suíça tem 247, o Reino Unido 647, cinco vezes mais do que em Portugal. Quando digo que a situação em Portugal é boa e que há razão para preocupação, mas não há razão para alarmes, no sentido em que estamos numa situação difícil e que vai acontecer algo terrível...
Passamos os dias a ouvir falar do que devia ter sido feito e preparado para esta segunda vaga e não foi. O que é que ainda se pode e deve fazer?
A primeira coisa é escolher com algum critério as pessoas que se quer ouvir. Há uma mudança radical em relação ao início da pandemia, em que havia uma única voz a falar. Agora, a situação está politizada. A politização da epidemia em Portugal faz com que as vozes que se ouvem também sejam vozes de política ou de ideologia e não vozes de saúde, como gostaríamos. Quando os antigos bastonários fazem uma carta em que dizem que temos de pôr a medicina privada a trabalhar, é um discurso ideológico. Como sabemos, os privados nem para as necessidades maiores daqueles que têm meios conseguiram responder e a certa altura enviam para os hospitais públicos. Depois, temos a política. Hoje temos um colega meu no DN que faz política pelo partido dele, o PSD, que defende que falta tudo, não foi feito nada, é uma catástrofe.
Essa visão tremendista corresponde ou não à realidade?
Não. A realidade é medida. É certo que há zonas onde os cuidados de saúde primários funcionam com mais dificuldade, mas a meu ver as regras são hoje demasiado pesadas para a gravidade da doença.
Está a referir-se a que regras?
Eu posso vir aqui mais facilmente do que entro numa instituição de saúde. Ora, isto não é aceitável. Os profissionais de saúde foram treinados e educados para correr riscos e sabem como se podem defender dos riscos e como evitar que os outros corram riscos. Admito mal que haja regras mais rigorosas numa instituição de saúde para acolher um doente de uma patologia qualquer do que as regras para ir a um outro local. Porquê isto? Por causa do medo. Há uma epidemia de medo que está instalada e é alimentada todos os dias, mas devia-se fazer o contrário: tentar retirá-la, dando a noção efectiva dos riscos que as pessoas correm, se ficarem doentes.
O primeiro-ministro diz que é preciso um abanão, o Presidente da República admite um estado de emergência. Os responsáveis políticos dão a entender que as pessoas não estão a ter um comportamento adequado. Esta mensagem é errada?
Cada um deles cumpre a lógica da sua esfera. Primeiro-ministro e Presidente da República estão alarmados com o aumento do número de casos, mas não podemos olhar só para o número de casos. Temos de olhar para o número de casos que exigem hospitalização e tratamento intensivo. O que é preocupante é esse aumento; não é o aumento global de casos, que são na sua maioria assintomáticos e que resultam da grande amplitude do rastreio. Alarmado talvez por isso, o primeiro-ministro disse que era preciso chamar a atenção das pessoas, porque em certos grupos a nossa tendência natural para não cumprir regras vem ao de cima com alguma facilidade. Já agora um parêntesis: os nossos vizinhos espanhóis nunca as cumpriram, os italianos também não, a Inglaterra fechou os bares, mas os nossos nunca chegaram a abrir; as nossas regras que têm perdurado têm mostrado eficácia de tal modo que os outros querem implementar as mesmas regras. Não sei o que quer dizer o Presidente da República com emergência, porque de facto não estamos em nenhuma emergência nacional. Os serviços de saúde estão a responder tranquilamente. Os testes rápidos para as situações agudas que dão resposta em meia hora podem ser de uma enorme utilidade nas urgências para saber se as pessoas estão com covid ou uma gripe. Hoje há tecnologias novas que nos vão permitir ultrapassar melhor as dificuldades. Por obrigação e por interesse próprio, o Presidente da República certamente leu o que se passa na Europa e não quer que aconteça o que está a acontecer noutros países. Mas acho que estamos muito longe disso e não há nenhuma razão para utilizar uma palavra grave como é o termo emergência.
E há alguma razão para lançar já avisos sobre o Natal?
Não quero avaliar o que o Presidente da República faz. Só quero dizer que a fábula do lobo pode ser má. Avisos extemporâneos exagerados podem fazer com que as pessoas na verdadeira altura não levem a sério aquilo que podem vir ter de fazer e ter de se recorrer a algum ar mais autoritário e o autoritarismo não é o caminho para uma epidemia que se transmite pelo comportamento das pessoas. Se não tivermos pessoas que tenham consciência de como a infecção se transmite e que o ponham em prática, nunca conseguiremos controlar nada. Temos de acreditar que vamos conseguir ter um estilo de vida que nos permita conviver com a covid-19 e com o tempo a passar vamos percebendo cada vez mais que ela não é uma doença grave. É um factor desencadeador de situações graves a quem tem co-morbilidades. Vem mostrar que os idosos com outras doenças são bastante mais frágeis do que aquilo que se acreditava. Há que olhar de uma forma compreensiva e detalhando onde agir e qual é o risco para a sociedade.
Que tipo de medidas então fazem mais sentido? Restrições no Natal? Semáforos por regiões? Máscara obrigatória na rua? Cercas sanitárias?
A generalização é um inimigo da boa acção. A resposta nunca pode ser uniforme. Bom, não sei o que será os semáforos por região. Sobre o Natal os dados mostram que as festividades e os encontros são neste momento o principal factor de transmissão, com a agravante que nesses encontros se juntam várias gerações. Eu, com 72 anos e saudável, não tenho problema em estar com os mais novos. Agora, se tiver uma hipertensão ou se tiver uma patologia oncológica em tratamento, acho que eu não devo ir festejar o Natal com os meus netos e os meus filhos. Um encontro pontual não é grave, mas não vou estar uma noite inteira a festejar. A lógica de fecha o Natal ou abre o Natal para mim é muito traumatizante. Não deve ser tomada assim. Sobre as máscaras penso que não há razão para impor as máscaras nos sítios abertos. A Madeira impôs a máscara por uma questão de marketing turístico. No dia-a-dia, para chegar aqui, venho sem máscara. Se vou ao Chiado, que está cheio de gente, uso a máscara. É uma questão primeiro de conhecimento e depois de bom senso.
Como vê a situação dos lares?
Os lares da União das Misericórdias nos últimos quatro meses têm uma mortalidade baixíssima ou inexistente. As circunstâncias dos lares, contudo, são muito distintas. Nuns é grave, noutros não é. O cumprimento das regras mostra que é possível prevenir a infecção, embora seja difícil, porque há cada vez mais casos de infecção assintomática. O cuidado com os trabalhadores dos lares tem de ser redobrado. Não podemos estar à espera que o primeiro-ministro diga que é preciso um abanão. Tem de haver regularmente testes aos funcionários. Tem de ser verificada diariamente a temperatura e chamada a atenção sobre se estiveram em contacto com algum infectado. Em situações como Reguengos, a mortalidade foi elevada por circunstâncias locais que tinham que ver com o pessoal. Oitenta por cento ou 90% das pessoas que trabalham nos lares recebem o ordenado mínimo, têm uma formação muito básica, são pessoas muito dedicadas, mas quando é preciso dar uma resposta devem ser muito bem acompanhadas.
Situações graves como esta mostram a fragilidade do nosso tecido social. E revelaram as condições deficientes de muitos lares e como nas periferias das cidades a epidemia se difunde. Se vivem quatro pessoas por assoalhada, se a pessoa fica isolada em casa, contagia todas as outras. O país com mais mortes é o Peru – que foi o que mais isolou. Pôs as pessoas todas em casa, mas as pessoas não tinham frigorífico, tinham de ir às feiras de rua todos os dias. O Estado deu um subsídio às pessoas, mas, como só 13% tinha conta bancária, as filas à porta dos bancos para ir buscar o dinheiro eram quilométricas. Uma boa medida provocou nuns sítios a resolução do problema, noutros causou a catástrofe. Não podemos generalizar.
E o caso da Suécia que não confinou propriamente e teve mortes elevadas?
Tem 585 mortes por milhão de habitantes, quase três vezes as de Portugal. A maior parte dos casos de mortes foi nos lares. A lógica sueca em que as famílias se desligam e os filhos não ligam nada aos pais, em que se quiser ir para o hospital vai, se não quiser não vai...
É deixar morrer.
Não é deixar morrer. É o próprio que não quer ir. A nossa lógica humanista cristã não tem nada que ver com esta lógica protestante e de família tão solta. Do ponto de vista epidemiológico, estou de acordo com os meus colegas suecos que dizem que no fim a situação vai ser semelhante em países que são comparáveis do ponto de vista de condições de saúde, nível de vida económico. Estamos perante uma epidemia sindómica, um termo novo, em que há uma sinergia grande com outros factores da sociedade, por um lado, com outras patologias – não é a co-morbilidade de que falámos, mas um outro problema muito grave que para mim é talvez o problema mais preocupante em Portugal em relação à pandemia que é as outras patologias que não têm nada que ver com a covid e que não estão a ter a resposta de saúde que deviam ter.
Os doentes com outras patologias estão a ficar para trás?
Estão a ficar muito, muito para trás. Os reflexos na mortalidade estão a aparecer. A epidemia vai ter reflexo noutra área da saúde, embora não tenha uma relação directa. Há aqui uma sinergia. Outra sinergia tem que ver com o tecido social. A epidemia tem um reflexo grande nos mais fracos da sociedade, em quem deixou de ir ao médico, quem deixou de se cuidar, de participar em tratamentos de última geração.
Há o factor medo e a falta de capacidade do sistema de saúde para tratar todos doentes ao mesmo tempo.
O factor medo incide também nos profissionais de saúde. Encontro mais medo nos profissionais de saúde, que raciocina numa lógica da doença com que convive, do que nos outros cidadãos.
Temos mortalidade acrescida, que é seguramente por causas que não têm que ver com covid, mas com o receio das pessoas em se tratarem e de os serviços providenciarem os tratamentos que adiaram por via da pandemia.
O que é que é preciso fazer?
Podia fazer uma crítica ao Ministério da Saúde. O ministério teria de ter uma coragem forte para fazer um plano Outono-Inverno que não fosse centrado na covid. O meu medo como alguém da saúde pública é que a pressão das redes sociais e da comunicação social continue a obrigar o Governo... É preciso coragem para que o Governo consiga mudar a lógica da sua actuação, pondo um foco progressivo mais forte naquilo que é a patologia colateral à covid e que evite o agravamento desta epidemia sinérgica que é a epidemia da mortalidade pelas outras patologias que não são covid. Isto exige coragem política, mas é uma necessidade crescente.
O CNSP reuniu-se muito pouco ao longo destes meses de pandemia. Lamenta que não tenha sido mais ouvido pelo poder político?
Não. Continuo a achar que não há razão para ouvir o conselho. A reunião serve para dar resposta política à deputada Catarina Martins, que disse esta semana que o conselho não se reunia. Isso para mim é claro. O conselho é composto por um conjunto de pessoas que tem origem muito diversa, como o chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, o general responsável pela Protecção Civil, o presidente da União das Misericórdias, o representante da hospitalização privada. A comissão, por ser tão heterogénea, serve para primeiro dar, sobre uma questão nova, a visão desses diferentes sectores; segundo, dizer o que é que esses sectores podem contribuir para a resolução do problema. Mas não são estas pessoas que definem uma estratégia; os que são da área e que propõem a quem tem de decidir que são os políticos. Aquilo não é de forma alguma um conselho de especialistas. Justificava-se reunir o conselho no início, porque estava-se perante uma situação nova, era preciso ver os meios que tínhamos, como podíamos responder e cada um disse aquilo que sabia.
Hoje, a estratégia que o Governo seguiu é a correcta e muito boa, com resultados excelentes a nível europeu. Sinceramente, acho que não havia razão para nova reunião, mas a senhora ministra, respondendo à pressão política, entendeu reunir o conselho. Veremos sobre o que é que o conselho vai ser interrogado.