Isabel Milheiro chega apoiando-se em duas bengalas. É início da tarde em Idanha-a-Velha e o único café-restaurante da aldeia, Casa da Velha Fonte, enche-se. Os visitantes de fora, incluindo estrangeiros, estão sob um toldo, à volta das refeições; os habitantes ficam-se pelas mesas e cadeiras alinhadas ao longo da fachada do edifício, para o café. Ti Isabel, como é conhecida por todos, instala-se com vista para a amoreira que dá nome à rua, onde tantas vezes brincou em pequena, e para a “casa do ricalhaço” (Casa Marrocos, abandonada), onde “todos trabalharam”.
Ao nosso lado, o pelourinho, a igreja matriz, onde Ti Isabel se casou, e a escola, há anos fechada, onde nunca andou. Fechada: “Havia muita rapariga aqui, agora não há, nem crianças…” Tem 87 anos, muitas histórias e lendas para contar da sua terra - desfia logo a do rei Wamba. “Estamos todos aqui dentro da muralha, fora há muito pouco”, diz.
“Está a ver aqueles senhores ali?”, aponta para umas mesas ao lado, “têm casa em Lisboa e casa aqui”. Ela também viveu muitos anos em Odivelas, lá nasceu-lhe um filho, o outro já foi daqui. Quando regressou, ela e o marido começaram a construir adufes e a fazer marafonas. Ela fazia ainda “os bicos das toalhas”. Mas o marido morreu e Ti Isabel deixou tudo isso. Também já não toca e canta no balcão da sua casa, bem à sombra da torre templária. “A alegria abalou-se-me, abalou-se tudo.”
Contudo, tragam-lhe um adufe e ela regressa aos dias passados a cantar, “e nunca a mesma cantiga”, a sachar, a apanhar azeitonas; quando havia um “rancho grande de raparigas” em Idanha, quando “iam e vinham a pé à Senhora do Almortão”. “Eu gostava muito de tocar adufe, assim que via um adufe tinha de batê-lo. E cantava muito.”
Passamos-lhe um adufe para as mãos - “É pequeno, não tem som”, queixa-se. “Toque aí uma gaitada que eu vejo se está bom ou não”, incentiva alguém. As mãos de dedos grossos e tisnados, vestidos de anéis grossos, animam-se, a voz solta-se nos versos que repete duas vezes: “Adeus, ó Idanha-a-Velha/ duas coisas te dão graça/ o alto do castelo/ e o pelourinho na praça/ adeus ó Idanha-à-velha/ cercadinha de oliveiras…”.
No alto do castelo, algum tempo depois, ouviremos outras vozes que cantam vindas dos olivais em redor. A torre está em ruínas, há buracos de escavações arqueológicas abertos em seu redor e vista para o passado - uma parte deste já cristalizado, resultado do trabalho de décadas a desenterrar a história de Idanha-a-Velha, a outra a caminho de cristalizar-se, ou a população não estivesse reduzida a 40 habitantes. Parece que a cada nova descoberta arqueológica Idanha-a-Velha se torna mais um museu - cada vez menos vivo.
Tem fundação romana, Idanha-a-Velha, Civitas Igaeditanorum (século I a.C.). A muralha que construíram os romanos abrigou suevos e visigodos, que da Egitânia fizeram sede de bispado, e depois os árabes. Houve Portugal e foi doada aos templários e mais tarde à Ordem de Cristo, D. Manuel I concedeu-lhe foral e o pelourinho. Por aqui caminhamos sobre calçada romana, transpomos o rio Pônsul em ponte com a mesma origem e espreitamos também as ruínas de uma villa, bem junto à porta sul da muralha.
Entretanto, outras camadas de história aqui assentaram: um antigo templo deu lugar à torre de menagem que os templários ergueram, a Igreja de Santa Maria encerra em si vários locais de culto (desde baptistérios paleo-cristãos ao local das ablações muçulmanas), entre o século IV ou V até à última intervenção manuelina (agora a sua torre é ninho de cegonhas, que chegam em Janeiro, com as chuvas), ao seu lado, ruínas do que se supõe ter sido paço dos bispos suevos e visigóticos e uma série de pedras alinhadas repescadas a várias eras - as pedras de Idanha-a-Velha misturam-se no tempo e ganham novos usos.
Da herança romana há quem tome conta com especial carinho. Na Casa do Arqueólogo, o arqueólogo Artur Côrte-Real faz-se “substituir” por Petrónio, escritor satírico romano e sobretudo um bon-vivant que gostava de receber pessoas - ele é o verdadeiro anfitrião deste alojamento local bem no centro da aldeia. E tem um “bom amigo” no vizinho restaurante Casa Velha da Fonte, Apício, gastrónomo romano no qual Maria Caldeira Sousa (também) se inspirou para criar a ementa do seu restaurante.
“Idanha-a-Velha é também um palco, um cenário ideal para a comida”, aponta Maria, que está a tirar um mestrado em Alimentação na Universidade de Coimbra e faz investigação histórica para “criar fusões gastronómicas das civilizações que estiveram dentro da muralha”. Por exemplo, o pato Apício, com linguini nero, mel rosado, nozes, directamente de Roma, ou o cordeiro, inspirado nos judeus (“não mandaram, mas estiveram aqui”).
“Esta aldeia merece que se marque a diferença em todos os aspectos. Tem uma carga histórica tão grande”, reflectem Maria e Rui Sousa, ambos apaixonados por História. Artur Côrte-Real refere também “esse ambiente de historicidade” que aqui se vive e que conhece tão bem, ou não tivesse coordenado o projecto de reabilitação de Idanha-a-Velha nos anos de 1990. “Fiquei sempre com a ideia de que um dia podia regressar”, conta por telefone, a partir de Coimbra, onde vive. Recuperou duas casas; mantém-nas, não só como rendimento, “mas para contribuir para trazer visitantes”.
É final de Setembro e vêem-se alguns turistas a passar pelas ruas de paralelos imaculados de Idanha-a-Velha - ou “pendurados” na muralha norte, com um passadiço de metal novíssimo. O forno comunitário e o lagar de varas, também posto de turismo, estão fechados.
Há quem se sente à porta de casa, há quem ande na sua vida, pondo, por exemplo, roupa a secar ao lado da igreja - Mário Robalo abre a pequena divisão a que não se pode chamar loja, mas onde improvisa a venda de alguns produtos “locais”. Tem borrachões, que são biscoitos secos que “levam um bocadinho de aguardente”, queijo artesanal de ovelha, mel de rosmaninho, e vinho, de Reguengos de Monsaraz - “porque”, justifica Manuel Robalo (Robalo tatuado no braço), “não encontrei de cá”. Cresceu em Almada, e está aqui, na terra da família, há 12 anos. “Saí da selva e vim para o paraíso.”
Artur Côrte-Real diz que Idanha-a-Velha “morreu no tempo e por isso se manteve”. Olhe-se para o leito seco, por estes dias, do rio Pônsul, com as suas poldras sem aparente serventia - parece que vemos um náufrago da história. E esse é o seu sortilégio.