Cuidadores informais: um dia a menos
Direitos plenos para cuidadores informais e uma rede pública de cuidados formais são mesmo o que precisamos. Se não se agir já, pagaremos a cada dia a sua ausência.
Quando, em 2010, discutíamos a versão final da Estratégia Europeia de combate à doença de Alzheimer e outras demências, deparei-me pela primeira vez com as vidas de dedicação a tempo inteiro. Falo, obviamente, de cuidadoras e cuidadores informais que todos os dias tratam dos seus familiares. Esse mundo tantas vezes invisível foi-se dando mais a conhecer nos últimos anos, sobretudo pela acção pública de muitos cuidadores e cuidadoras. Já ninguém pode dizer que não sabe da sua existência, mas ainda falta muito caminho para reconhecer os seus direitos.
Há, em Portugal, mais de 800 mil pessoas a ter de cuidar dos seus. Pessoas que para cuidar abandonam as suas vidas, os seus empregos, as suas amizades, os seus direitos. Pessoas a quem nenhum cuidado é prestado. Há poucos anos, várias destas pessoas lutaram pela criação do estatuto de cuidador informal, procurando garantir alguns dos direitos e da dignidade que lhes é devida. Criaram também a Associação Nacional de Cuidadores Informais, numa das mobilizações mais belas que vimos acontecer em Portugal na última década. Tive o privilégio de conhecer algumas dessas pessoas fora do comum, quase sobre-humanas. O estatuto levou tempo a ser regulamentado e deixou de fora muitos dos direitos que lhes são devidos, mas avançou e, mesmo que fosse apenas pelo reconhecimento, já teria valido a pena. O problema é que são muito poucas as pessoas que pediram o estatuto até ao momento. A realidade é atroz, mas a mensagem dos direitos não está a passar.
Com a crise pandémica, quem já estava abandonado ficou mais ainda. O país não estava preparado, as instituições não estão preparadas. Assistimos dolorosamente a este abandono dos cuidadores e de quem é cuidado. O que se passa nos lares de idosos é das imagens mais cruéis desta pandemia. Em Portugal, como nos restantes países da União Europeia, vivemos a consequência da desistência da luta pelo combate à pobreza e às desigualdades e da defesa do Estado social. A ausência de uma resposta pública para os mais idosos e a falta de apoios a cuidadores formais e informais traduziu-se numa sobretaxa de mortalidade que podia, e devia, ter sido evitada. Houve muitas pessoas a quem as medidas de contingência e de apoio não chegaram e ainda não chegam. E são muitas as pessoas que não chegam a elas, como se torna evidente no caso dos cuidadores informais. Em suma, a crise pandémica tornou ainda mais visíveis as desigualdades e a injustiça.
É nossa obrigação perceber a realidade que estamos a enfrentar e agir para proteger os sectores mais desfavorecidos da população. Nesta crise está em teste a nossa capacidade de aprender com os erros passados e não deixar ninguém para trás. O reforço dos serviços públicos é um dos instrumentos fundamentais para sairmos mais fortes e mais humanos de tudo isto. O outro é o reconhecimento pleno dos direitos de quem cuida. São pessoas como todas as pessoas, mas com os direitos pela metade.
Na União Europeia sabe-se que cerca de 80% dos cuidados prestados são feitos por cuidadores informais e, no dia 6 de Outubro, celebrou-se o primeiro Dia Europeu do Cuidador. Um dia já sugerido há dez anos, quando trabalhávamos na Estratégia Europeia, mas só agora posto em prática em resultado da pressão da Eurocarers, a associação europeia que junta associações de cuidadores de vários países europeus. A ideia é dedicar uma atenção concreta aos cuidadores de todos os países europeus sem a fragmentação habitual de cada país. É um dia importante para pôr na agenda tudo o que está por fazer e é, nesse sentido, um dia a menos para conquistar visibilidade necessária. Na semana em que discutimos também os impactos da covid-19 para os cuidadores, ficamos com a certeza que, se os direitos de quem cuida fossem devidamente reconhecidos, poderíamos ter evitado o cenário trágico que vivemos com os mais idosos. Por isso, repita-se: direitos plenos para cuidadores informais e uma rede pública de cuidados formais são mesmo o que precisamos. Se não se agir já, pagaremos a cada dia a sua ausência.