Ser diferente em Leiria

O leitor Camilo Sequeira foi conhecer o Centro de Diálogo Intercultural de Leiria e fez as pazes com a cidade.

Foto
DR

Desde a minha infância que tenho um preconceito, por um acontecimento de vida, em relação a Leiria. Era, intencionalmente, a única capital de distrito onde sempre recusei dormir, pelo que passava por lá apenas para ver e rever o castelo e logo lhe voltar as costas. Mas o tempo corre à nossa frente e fez-me chegar a uma idade em que, porque os preconceitos não fazem bem a ninguém, tinha de visitar, com vagar, esta cidade. E em muito boa hora o fiz.

É uma terra pequena e actualmente não mostra o castelo. Mas, para minha surpresa e agrado, descobri em Leiria o que nunca encontrei em quaisquer das outras cidades de Portugal que visitei. E não, não estou a referir-me ao menino de Lapedo, embora este também esteja, ainda que com muita simplicidade, bem recordado por lá e justifique uma viagem.

O que me surpreendeu, com enormíssima satisfação, foi encontrar nesta localidade do meio interior português um pequeno exemplo, pequeno mas excelente, da ecumenicidade que em Tubingen durante muitos anos foi ensinada por Hans Kung, E num local de culto que foi da mesma confissão deste sacerdote: a Igreja da Misericórdia de Leiria que, recuperada, é agora um centro cultural de discussão, promoção e divulgação dos valores da diferença. Chama-se Centro de Diálogo Intercultural de Leiria. 

Isso mesmo: da diferença. Procurando mostrar que é aceitando esta que nos promovemos como pessoas, dignificando-nos em função da capacidade que tivermos para nos identificarmos com o outro, diferente de nós, sim, mas absolutamente igual em direitos e deveres.

Foto
DR

E a diferença em causa é uma das que, desde sempre e muito hoje, é sinónimo de violência, intolerância, conflitualidade e criação de sofrimento por razões que só os que as promovem, ou talvez nem estes, saberão justificar: o divergir na religiosidade dos milhões de crentes no Deus de Abraão. Que todos dizem amar. Mas que, demasiados, julgam demonstrar esse amor desamando em Seu nome outros amantes porque têm diferentes formas de ser fiéis.

Em Leiria, num local de culto que se tornou exemplo de partilha e cooperação religiosa, os representantes das confissões do Livro descobriram maneira de dizerem a crentes e incréus que o que os identifica é muito mais valioso que as diferenças de práticas que cada um tem como melhor adequadas à expressão do respeito pelo Criador.

E foram capazes de mostrar lado a lado sínteses de cada uma das confissões que alguém como eu, que já leu dezenas de textos sobre as mesmas, considera do mais claro, límpido e honesto que sobre elas se escreveu. Qualquer pessoa, interessada ou não em religião, encontra neste salão espiritual uma oportunidade para sentir que ainda vale a pena ter confiança numa humanidade, mesmo que ela pareça, tantas vezes, ter como objectivo exactamente o contrário: eliminar da vida dos seres humanos a esperança num mundo melhor. Em Leiria juntaram-se responsáveis das três grandes religiões monoteístas para gritar bem alto, em conjunto e abraçados, que estar vivo é bom, a felicidade é possível, a entreajuda e a discussão são caminhos de Deus de onde ninguém é excluído.

Visitar uma cidade talvez seja considerado um prazer de onde se deve excluir a preocupação com o mundo. É lazer, é descontracção, é um tempo de despreocupação nas vidas que, hoje como ontem, têm complexidades excessivas no quotidiano. E, de facto, também é isso. Mas o viver faz-se de bem e mal, de simples e complicado, de dia e de noite. Por isso tem sentido propor como complemento daqueles desejos juntar ao prazer habitual que se espera de uma viagem um ganho de valor pessoal, uma reflexão sobre o que proporciona esse ganho, uma visão directa de algo que, porque quer proteger o mundo da violência destrutiva, cria tempo e espaço para fruição daqueles comuns valores do viajante.

Em Leiria encontra-se à disposição de todos nós um local onde essa reflexão pode ser feita sabendo que há, nesse preciso momento, uma imensidão de pessoas em todos os cantos do mundo que “também estão reflectindo essa nossa reflexão”. E para mim, viajante vulgar e curioso do futuro, foi um prazer encontrar este espaço em Portugal, tal como é com prazer que o proponho a outros visitantes.

Claro que com esta viagem fiz as pazes com Leiria. Mas, bem mais importante do que esse particular pessoal, foi o demonstrar-me, como se o não soubesse já, que preconceitos são retrocessos no viver.  

Camilo Sequeira

Sugerir correcção