Diz lá, Beatriz, há um manual de instruções para a vida?
Não há, mas o novo livro de Rita Fatela está perto. De uns rabiscos nasceu Beatriz, uma personagem fictícia que reflecte sobre o que pensa e sente na sua conta de Instagram. Agora, aparece-nos num livro de ilustração, Diz lá, Beatriz - Isto não é um Manual de Instruções para Ser Humano, para mostrar que não faz mal ser humano e sentir coisas.
Rita Fatela é psicóloga de profissão, mas, nas horas vagas, ilustra pequenos quadrados de banda desenhada sobre saúde mental. Através da personificação e da construção de metáforas, muitas vezes com algum humor e sarcasmo, simplifica conceitos complexos — como a dualidade entre coração e cérebro —, tornando-os mais leves e compreensíveis. Diz lá, Beatriz - Isto não é um Manual de Instruções para Ser Humano, a adaptação da conta de Instagram para livro, reúne a essência da boneca em tiras de ilustração.
A proposta de fazer um livro apareceu de surpresa: no email da Beatriz, que Rita pouco consultava, aguardava a sugestão da 20/20 Editora. “Eu achei aquela ideia surreal e, ao mesmo tempo, a fazer todo o sentido”, conta ao P3. Sempre quis escrever um livro, desde pequena, mas nunca pensou que o primeiro iria ser um de ilustração. “É um sonho tornado realidade de uma maneira que eu nunca imaginei”, exclama.
Tudo começou com uns rabiscos de “autocuidado” que fazia para si e para os seus, até os amigos e a família a encorajarem para que se tornasse algo maior. Rita não os vê como ilustrações, mas sim “mais como aqueles desenhos que se fazem nas mesas dos restaurantes”. Um bocado “por impulso”, cresceu para Diz lá, Beatriz: uma conta de Instagram em que publica alusões às “questões humanas, de forma leve, cómica e desenhada”, e onde a Beatriz interage activamente com os seus mais de 6 mil seguidores. Agora, cerca de um ano e cinco meses depois, transformou-se num livro. Para Rita, “desenhar é uma maneira de aliviar stress”. Embora a evolução da Beatriz tenha exigido alguma estrutura, fá-lo por gosto e não por obrigação.
“As pessoas já me falam da Beatriz como se ela existisse”, sublinha. Mas a Beatriz não tem cor de pele ou idade, porque “a Beatriz não existe”. A personagem fictícia “não é psicóloga no Instagram” e não dá consultas. Apenas reflecte sobre os assuntos e, no máximo, pode ajudar as pessoas a “chegar a um psicoterapeuta”. A sua descaracterização permite que qualquer um se relacione com ela e facilita a abordagem por não se tratar de uma pessoa conhecida, conta a autora. No entanto, a Beatriz “é apenas um recurso” e não deve “substituir a ida a um profissional de saúde”, alerta.
Os desenhos de Rita, “com palavras simples e sem complicar muito”, são para qualquer pessoa e apresentam um “tom lúdico”. Como tal, o seu público-alvo não escolhe idades: "Eu tenho mais ou menos pessoas desde os 18 até aos 50 anos.”
A escolha do nome pareceu óbvia. Sempre gostou de Beatriz e queria um nome que rimasse com “diz”. “Acabou por assentar que nem uma luva à bonequinha”, conta Rita. Assim nasceu o Diz lá, Beatriz, em referência a uma piada que partilha com as suas amigas psicólogas: “Todas nós já ouvimos, nalgum momento, um ‘Vá, diz lá, psicóloga...’ bem-humorado quando tentamos responder a alguma pergunta ligeiramente mais profunda. Pareceu-me um paralelismo natural e engraçado na altura.”
A boneca, tão sensível quanto reivindicativa, serve para “trocar por miúdos” conceitos como o amor-próprio, a auto-estima, o autocuidado e o crescimento pessoal, mostrando que “estão, e podem estar, presentes nas coisas mais simples e quotidianas da vida”. Além disso, acontece também uma normalização e aceitação de questões como “a ansiedade e o erro — conceitos que provocam em cada humano sensações e emoções difíceis de gerir”. Assim, a Beatriz é um veículo para as pessoas encontrarem as respostas que procuram, ao reflectirem sobre o assunto. Há uma intenção de “levar assuntos pesados para a mesa, sem que as pessoas pensem que estão a pensar sobre eles”.
A inspiração para os desenhos surge “do mundo em si”, das vivências da psicóloga e daquilo que se atravessa no seu caminho. A sua profissão também contribui, em parte, não só porque a habilita para falar sobre saúde mental, mas porque a “ensinou a pensar” e a fazê-lo de perspectivas diferentes. Contudo, a autora diz gostar de “manter a distância entre a Rita e a Beatriz”, preferindo manter algum anonimato em relação à sua identidade. Além disso, há desenhos que são só seus, e com os quais “ri muito”. “Os psicólogos também têm de ter autocuidado, são humanos como quaisquer outros”, ressalva. Quando revisita os rabiscos da boneca, acede a partes de si que “naquela altura” nem sabia que estava a desenhar.
Num momento em que a distância se impõe, e que a covid-19 “forçou a parar para reflectir”, “é importante falar das coisas que nem sempre queremos falar”, e as redes sociais “são facilitadoras” na aproximação. “Os humanos têm esta capacidade espectacular de fugir do que é desagradável ou triste”, explica, alertando para os benefícios de “falar de coisas com profundidade de uma forma acessível e descontraída”.
Rita acredita que é possível existir um mundo onde se fala abertamente da saúde mental. “Já se vê melhorias muito grandes”, confirma, embora ainda “exista muito estigma” e falta de compreensão. “Sempre que faço um post e peço a colaboração dos seguidores da Beatriz tenho dezenas de respostas e faz-me sempre sorrir pensar no quanto o post se torna realmente em algo construído por seres humanos para seres humanos”, conta.
O livro, publicado pela Influência da 20/20 Editora, não é um manual de instruções e, como tal, não pode indicar os passos para o bem-estar pessoal. “Se a vida tivesse um manual de instruções, ninguém o ia ler, porque ninguém lê os manuais de instruções”, brinca. O essencial é ter “respeito e amor-próprio”, assegura. A autora reconhece que quando se enfrentam situações difíceis, há tendência para “querer algo estruturante e seguro” que ajude a orientar. No entanto, destaca que as pessoas não o fazem “nos momentos prazerosos”, pois a imprevisibilidade “é fascinante quando se fala de coisas como o amor e a felicidade”. E conclui: “Se existisse um manual de instruções, quero acreditar que haveria um por cada ser humano, e que seria dinâmico e capaz de evoluir com o tempo e com as aprendizagens.”
Texto editado por Amanda Ribeiro