Porquê a Mesquita (da Sé)
Por tudo isto, Lisboa precisa destas estruturas. Aliás, esperava-as há muito. Porque convocam a nossa história como nenhumas outras até hoje. Porque nos restituem à complexidade originária que é o mais fundo da nossa identidade. Destruí-las seria um crime patrimonial impensável.
Como as madalenas para Proust está a Sé de Lisboa para a nossa memória colectiva. Depois que D. Afonso Henriques consumou a transferência para aí das relíquias do mártir S. Vicente, vindas da igreja cristã localizada no promontório do mesmo nome, que havia servido de santuário de peregrinação a cristãos e muçulmanos durante todo o período islâmico, não mais a catedral de Lisboa, que sabíamos desde a Idade Média ter resultado da cristianização da mesquita aljama, ela própria com toda a probabilidade construída no lugar de uma basílica cristã tardo-antiga, deixou de ser um dos centros simbólicos do reino, centralidade acentuada pela capitalidade de Lisboa.
As reconstruções depois do terramoto e os projectos de restauro durante os séculos XIX e XX reflectem a procura, por vezes cenográfica, dessa medievalidade original, capaz de nos transportar miticamente às origens da nacionalidade. A posição de que partiam esses restauros era a de uma unificação do discurso e da imagem, apesar dos testemunhos de uma complexidade perdida que povoavam algumas paredes, remetendo para épocas muito anteriores ao edifício dos dois reis fundadores e mesmo anteriores aos mais de quatro séculos da Lisboa islâmica.
Por todas estas razões, as escavações do claustro na década de 90, iniciadas por José Luís de Matos e Clementino Amaro, depois continuadas até ao presente por Ana Gomes e Alexandra Gaspar, marcam um ponto de viragem sem retorno na percepção da História da Sé e do passado de Lisboa. Tratou-se da primeira intervenção arqueológica de vulto realizada na cidade, aliás a primeira de muitas, e marcou indelevelmente uma nova leitura da evolução urbana, revelando a lógica do sistema viário da Lisboa romana, ao mesmo tempo que explicava a evolução social na alta Idade Média através da privatização da rua romana. Abria ainda janelas insuspeitas para episódios do passado que as fontes escritas normalmente não revelam.
Todos nos comovemos com o tesouro de moedas e fragmentos de moedas suspenso por algum próspero habitante de al-Ushbuna no esgoto da cidade, provavelmente antes da conquista cristã de 1147, na esperança, que se revelou infundada, de a cidade alguma vez voltar ao domínio islâmico. Todos nos intrigámos ainda com o grande compartimento de época islâmica, de paredes polícromas, que rematava a sul a área escavada, em articulação próxima mas difícil de interpretar com os patamares inferiores da rua romana. A relação com a mais que provável mesquita central (aljama) da cidade parecia evidente, mas muitas dúvidas subsistiam então sobre o seu significado.
Tal como estava, mesmo fragmentário, esse edifício introduzia no entanto um novo registo na nossa leitura do passado. O sítio da Sé perdia a linearidade narrativa que se introduzira depois das obras do século XII e retomava a complexidade da história que por tantos séculos escondera. Recuperava-se uma memória entretanto perdida que nos restituía a outros antes de nós, também antepassados, doutra religião abrâmica, habitantes de uma cidade que aliás partilhavam, pela metade, a acreditar num visitante nórdico de princípios do século XII, com a muito numerosa comunidade cristã, ela própria arabizada. Como as madalenas ao narrador de Em Busca do Tempo Perdido, o edifício da Sé de Lisboa devolvia-nos partes esquecidas do nosso passado colectivo.
E talvez por isso, ao contrário de muitas outras escavações, musealizadas, integradas em novos contextos ou destruídas (os arqueólogos usam para isso um eufemismo, “desmontadas”, que aqui evitaremos) que foram surgindo pela cidade, cada vez em maior número, nas duas décadas seguintes, talvez a mais importante e exemplar, a do bairro da Alcáçova do Castelo de S. Jorge, a grande ferida aberta do claustro da Sé foi ficando, à espera de possibilidade de um projecto de protecção, recuperação e musealização que a devolvesse aos lisboetas e visitantes enquanto testemunho de uma cidade de fronteira comercial, cultural e religiosa que, afinal, Lisboa nunca deixou propriamente de ser.
Por isso, quando há poucos anos finalmente surgiu um projecto de musealização e a vontade e os meios para o executar, por parte do Patriarcado e do Cabido da Sé de Lisboa, os donos da obra, assim como da DGPC, pareceu-me, como a outros lisboetas interessados (e o meu interesse era também profissional, sendo a História e, em particular, a medieval, há décadas, o meu ofício) que se fazia o que já deveria ter sido feito. A suposição esperançosa era, claro, que o projecto acautelaria as pré-existências e teria por centro aquilo que queria musealizar, isto é, os vestígios arqueológicos de várias épocas; enfim, que o assunto do museu fosse a História e não ele próprio.
Na semana passada, porém, fui, fomos, surpreendidos com a notícia de que a DGPC validava a destruição (tenho empenho em utilizar este termo, porque os registos detalhados do templo de Palmira e as fotografias que dele guardo não são o próprio templo, destruído pela ofensiva do Estado Islâmico) de uma parte importante do que a intervenção arqueológica que precedia o projecto de musealização tinha descoberto.
Paradoxalmente foi essa autorização, que ainda há tempo de reverter, a detonadora da revelação das descobertas recentes. E elas eram extraordinárias, como se veio a saber. Por debaixo da quadra meridional do claustro e quase ao mesmo nível da rua e da imensa obra do aterro medieval que sustenta a esplanada onde foi construído o claustro, dormia uma parte importante do complexo da mesquita aljama, com oito compartimentos identificados, o arranque das escadas de acesso à almenara (minarete) quadrangular, como todos os do Islão ocidental, e uns banhos (hamam), em associação à mesquita, onde permanecem intactos os bancos de alvenaria que serviam os fiéis. Na verdade falta apenas o oratório e o pátio das abluções, sobre os quais foi construída, como sabemos, a sé cristã, para completar todos os elementos clássicos que, desde a construção da aljama de Damasco, compõem uma mesquita. Se descontarmos a pequena mas emblemática mesquita de Mértola, nenhum outro conjunto em Portugal tem esta importância. Para os arqueólogos e historiadores, é certo, e ainda e sobretudo, para a restituição da nossa memória colectiva.
Sobejaria aqui a espectacular relevância histórica dos achados, mas o sítio, pela monumentalidade da escala, permite ainda desenhar um percurso por uma parte central da Lisboa islâmica, ouvir o chamamento do muezzin que acaba de subir as escadas da almenara, sentir o acotovelamento nos banhos antes da oração da sexta-feira e seguir depois os fiéis até ao mercado (Suq) próximo, situado entre a mesquita e a porta ocidental, saída para o extenso arrabalde ocidental e o ribeiro da Baixa.
Por tudo isto, Lisboa precisa destas estruturas. Aliás, esperava-as há muito. Porque convocam a nossa história como nenhumas outras até hoje. Porque nos restituem à complexidade originária que é o mais fundo da nossa identidade. Destruí-las seria um crime patrimonial impensável. Assim, não tenho dúvidas de que a DGPC saberá assumir o papel que é estatutariamente o seu, por si e através do Ministério da Cultura que a tutela. Estou também certo de que o Patriarcado empenhará todos os seus esforços para salvaguardar o património da cidade, como sempre tem feito ao longo dos anos. Tudo isto implicará, sem dúvida, ajustamentos no projecto. Mas isso é natural e expectável quando se constrói um museu num sítio tão sensível. Afinal, o objectivo de qualquer musealização é contar uma História, neste caso a nossa. E precisamos de tudo o que chegou até nós do passado para a contar. É essa a função das madalenas.