“O racismo na polícia francesa é algo muito grave”

Esteve infiltrado na polícia francesa durante dois anos para escrever um livro. O jornalista Valentin Gendrot conta tudo em Flic, que acaba de ser lançado em França: do racismo à pressão constante de uma profissão odiada que leva muitos ao suicídio.

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A polícia aprende a disparar na formação, mas não aprende a lidar com violência conjugal e a violência doméstica é um dos crimes com que mais tem de lidar Eric Gaillard/Reuters
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Protesto contra a violência policial em Fevereiro de 2019 em Paris,Protesto contra a violência policial em Fevereiro de 2019 em Paris Benoit Tessier/REUTERS,Benoit Tessier/REUTERS

O jornalista Valentin Gendrot esteve infiltrado durante dois anos na polícia francesa contando tudo o que viveu num livro em que revela o quotidiano de uma esquadra da polícia parisiense. E o retrato é tudo menos lisonjeiro.

“Não há controlo para entrar na polícia. No meu quarto éramos seis e entre nós havia uma pessoa com cadastro juvenil, outra com claras ligações neonazis e eu, que sou jornalista. A polícia recruta quem pode”, explica, principalmente depois dos ataques terroristas de 2015 em que foi preciso recrutar novos agentes num curto espaço de tempo.

Tal como o recrutamento não é o mais adequado, também a formação deixa a desejar. “Os polícias aprendem a fazer uma patrulha, um controlo na rua, a disparar, mas ninguém ensina verdadeiramente como intervir numa situação de violência conjugal. E a violência doméstica e os problemas entre vizinhos são grande parte das intervenções da polícia numa cidade”, explicou.

Com recrutamento pouco rigoroso e formação deficiente, não admira o racismo recorrente que Valentin Gendrot testemunhou na polícia, com pessoas controladas na rua por causa da cor da pele e detidos negros, magrebinos, árabes ou imigrantes em geral tratados habitualmente por “bastardos”, entre outros insultos.

“O racismo na polícia é algo muito grave e ainda mais grave porque a polícia representa o Estado francês”, considerou.

O jornalista francês, que já tinha feito outros trabalhos infiltrados, como vendedor porta-a-porta ou trabalhador de call center, começou por fazer uma formação inicial de três meses como polícia contratado e durante todo o tempo que passou como polícia nunca ninguém descobriu quais eram realmente as suas intenções.

Esses dois anos permitiram a Valentin Gendrot como esta “é uma das profissões mais difíceis” em França porque os agentes passam o tempo “submersos em meios violentos”. Esse é o seu quotidiano: “É algo extremamente difícil”.

O objectivo do jornalista era o de relatar o quotidiano de uma esquadra de bairro, mas ainda tardou 13 meses até conseguir ser transferido para uma, a esquadra do 19.º bairro de Paris, onde durante seis meses testemunhou a incapacidade da polícia para lidar com os problemas do dia-a-dia que tinha de enfrentar.

“No 19.º bairro há problemas de prostituição, droga, muitos roubos violentos. Mas esses roubos estão ligados ao consumo de crack. A polícia pode tentar apanhar quem rouba e quem vende o crack, mas os grandes traficantes não estão ali. Tocamos apenas na superfície dos problemas quando somos polícia de bairro”, disse Gendrot.

Essa incapacidade para resolver verdadeiramente os problemas e a pressão com que são obrigados a viver todos os dias são explicações para o tão grande número de suicídios entre agentes da polícia em França. Só em 2019, 59 polícias acabaram com a sua própria vida, um deles na esquadra onde o jornalista estava infiltrado.

“Há muitos elementos que podem explicar o número de suicídios na polícia. Desde logo a diferença entre o que esperavam fazer e o que realmente fazem e o facto de uma parte da população detestar a polícia. Viver todos os dias com o ódio de uma parte da população é algo muito particular. Ao mesmo tempo, quando se é polícia vive-se na violência e na miséria social todos os dias”, declarou.

A isto juntam-se “as condições de trabalho completamente degradantes”, os baixos salários (um polícia contratado ganha de base 1.340 euros por mês), a falta de presença das hierarquias e de apoio psicológico, mas também a autorização de porte permanente da arma de serviço, permitido mesmo quando os polícias não estão a trabalhar.

Mas viver na violência acaba por exprimir-se também na violência cometida diariamente pela própria polícia. “Claro que eu já tinha ouvido falar deste tipo de violência, mas há uma grande diferença entre ver na televisão e ser testemunha. A minha relação com a violência é de fugir, mas tive de ficar passivo perante o que vi. Eu não estava lá para fazer ondas, eu estava lá para mostrar como se passa a partir do interior”, contou o jornalista.

Um dos momentos mais polémicos no livro é quando o autor descreve um episódio em que um dos colegas bate num adolescente e em seguida produz um relatório falso sobre o que se passou, alegando que o jovem tinha agredido também o polícia. Gendrot participou nessa patrulha e na redacção desse relatório.

“Em relação ao falso relatório e falso testemunho, eu podia não incluir esse episódio no meu livro e decidi fazê-lo porque tenho um pacto de honestidade em relação ao leitor”, disse o jornalista que viu a inspecção-geral da Polícia Nacional francesa abrir uma investigação a este caso específico após a saída do livro já que o jovem tinha posteriormente apresentado queixa contra o polícia em questão.

Após o seu período de imersão, Valentin Gendrot conclui que “a polícia francesa vai mal”. “A polícia chega mesmo a esconder as coisas que vão mal. Enquanto os polícias não falarem, nomeadamente sobre o mal-estar, as coisas só vão piorar”, considerou, avançando que a polícia precisa “ser reformada”.

Acusado de não respeitar a deontologia jornalística, Gendrot defende-se dizendo que respeitou na íntegra as regras da Federação Internacional de Jornalistas (FIJ) e garante que o seu tempo na polícia mudou o seu quotidiano: “Cresci num meio sereno e nunca tinha conhecido um meio violento. Esta passagem pela polícia fez com que eu me tenha tornado mais desconfiado face ao outro.”