Suspensão da vacina de Oxford “não é uma derrota, é um revés”
Cientistas explicam que estas situações fazem parte do processo de desenvolvimento de uma vacina e que a suspensão dos ensaios para averiguação visa precisamente uma garantia da sua eficácia e segurança.
A suspensão anunciada esta quarta-feira do ensaio clínico da vacina contra a covid-19, que está a ser desenvolvida pela empresa farmacêutica AstraZeneca e pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, causou um compreensível desalento. No entanto, os responsáveis por esta vacina e outros cientistas que não participam no projecto esclarecem que esta é uma situação relativamente comum em qualquer ensaio, que ainda não se sabe se a reacção adversa detectada num dos 30 mil participantes está relacionada com a vacina e que a suspensão do projecto para análise deste caso é precisamente uma prova da segurança de todo o processo.
A vacina contra a covid-19 que está a ser desenvolvida pela empresa farmacêutica AstraZeneca e pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, era (e ainda é) um dos projectos mais promissores e mais mediáticos e, por isso, o desânimo é compreensível. Era também, pelo menos até agora, um dos processos que estavam numa fase mais adiantada. Por isso, até certo ponto, é normal que o primeiro-ministro, António Costa, tenha desabafado que “hoje acordámos com uma má notícia” e constatado que temos de “lidar com a incerteza”. Sobre a incerteza, os cientistas sabem bem o que isso significa no processo de uma descoberta. Sobre o facto de ser uma má notícia, os mesmos especialistas admitem que seria melhor que nada tivesse acontecido, mas esclarecem que é cedo para dizer.
É certo que a suspensão do projecto por ter sido detectada uma “reacção adversa grave” num dos 30 mil participantes no ensaio clínico não é uma boa notícia, mas ainda é cedo para encararmos este solavanco no projecto como uma má notícia que nos tire o sono. Primeiro, porque a reacção adversa detectada pode não ter nada a ver com a vacina. Ainda não se sabe. A empresa anunciou que vai investigar e que espera ter algum tipo de informação dentro de 48 horas, ainda que esse prazo possa parecer demasiado optimista. Em segundo lugar, este tipo de situações é comum no processo de desenvolvimento de uma vacina ou fármaco. Aliás, é para isso mesmo que servem os ensaios clínicos e as diferentes fases que são exigidas até que uma vacina (ou medicamento) seja usada pelas pessoas.
Ovos não estão todos no mesmo cesto
“A investigação científica é feita de muitos insucessos e alguns sucessos. O que vem para o conhecimento público são, normalmente, apenas os sucessos. Neste caso, este processo tem sido de tal forma mediático – e por boas razões – porque está toda a gente ansiosa que chegue uma vacina, que um possível insucesso também tem impacto, mas o que aconteceu é extraordinariamente comum em qualquer ensaio”, explica, ao PÚBLICO, o imunologista Henrique Veiga Fernandes, co-director do Centro Champalimaud. Assim, nota, “não é necessariamente uma má notícia”, pois isto ocorre de uma forma “muito natural e muito regular”.
O cientista lembra que o projecto da Universidade de Oxford tem sido marcado sempre por uma enorme transparência e preocupação com a segurança das pessoas, e que a vacina está já na fase três e passou “com distinção” nas anteriores fases. “Esta fase envolve 30 mil pessoas distribuídas em quatro países: Reino Unido, EUA, Brasil e África do Sul. Houve um indivíduo que desenvolveu uma reacção adversa que pode, ou não, ter uma relação directa com a vacina”, sublinha. Para salvaguardar a segurança desta vacina, o ensaio tem de ser suspenso. Mas a grande questão, insiste, é perceber se esta reacção está ou não relacionada com a vacina.
Apesar de argumentar que este projecto tem sido pautado por uma grande transparência, Henrique Veiga Fernandes reconhece que também não sabe ainda qual o efeito adverso comunicado. Só se sabe que terá sido um dos participantes no Reino Unido e que se trata de uma reacção com alguma gravidade. Sobre as implicações que este percalço poderá ter na corrida para encontrar uma vacina contra a covid-19, o investigador mantêm o optimismo. “Há várias vacinas em desenvolvimento, outros esforços com outras tecnologias. Os ovos não estão todos no mesmo cesto e, dessa forma, maximizamos as hipóteses de sucesso”, assinala o cientista, que arrisca dizer que o mundo poderá esperar ter uma vacina no início de 2021.
“O facto de aparecer fumo não quer dizer que há fogo”
O investigador Miguel Castanho, do Instituto de Medicina Molecular (em Lisboa), é menos optimista ou mais cauteloso, se preferirmos. Primeiro que tudo, avisa que há várias etapas pela frente e que vão desde a actual situação de desenvolvimento de uma vacina até à sua produção em massa e distribuição e, finalmente, até ao precioso momento de entrarmos no centro de saúde para sermos imunizados. O processo é longo. Por isso, quase forçado a arriscar um “palpite”, o cientista aponta para a possibilidade de termos uma vacina pronta a produzir em meados de 2021. Para o momento em que apenas “estendemos o braço”, é provável que seja necessário esperar um pouco mais, afirma.
Mas, até lá, problemas como o que surgiu esta quarta-feira podem acontecer. “O que aconteceu não é surpreendente porque quando se fazem ensaios deste tipo é sempre possível surgirem efeitos adversos que obrigam a fazer uma avaliação intercalar do processo de desenvolvimento de uma vacina. Isso é relativamente comum”, concede. O investigador nota que esta vacina “era a que estava mais à frente” e que “este revés deverá afectar o prazo optimista que tinha sido anunciado”. Outras vacinas com outros métodos impedem que se faça uma generalização e se anuncie que esta situação afecta todos os projectos. Por outro lado, estes problemas podem acontecer em qualquer projecto.
No caso dos fármacos, os efeitos secundários são praticamente uma inevitabilidade (todos os medicamentos que tomamos podem ter algum tipo de efeito secundário), mas com as vacinas isso não pode ser assim, diz Miguel Castanho. As vacinas são administradas a pessoas saudáveis e não podem fazer mal a ninguém, antes pelo contrário. As vacinas são a nossa defesa. “A segurança tem de ser absoluta”, diz, admitindo que há algumas vacinas com efeitos secundário mas que são leves, como inchaço, uma febre ligeira, entre outros sintomas que não são graves.
Entre outros danos que a suspensão do projecto da Universidade de Oxford pode provocar, Miguel Castanho admite que este problema pode ter um impacto na confiança das pessoas nesta (ou noutra) vacina para o Sars-Cov-2. “A vacina em si não nos protege, a vacinação é que nos protege. Se houver uma desconfiança das populações, pode haver um boicote nem que seja parcial da administração da vacina e isso compromete a meta da imunidade de grupo”, alerta. Isto também separa o mundo dos medicamentos e das vacinas. Como se luta contra esta desconfiança? “O facto de ter sido a própria empresa a anunciar, a suspender e a revelar que vai voltar a analisar os resultados é importante”, afirma, assegurando que estas circunstâncias devem dar “alguma tranquilidade às pessoas”. “Isto pode acontecer com qualquer vacina. A única diferença aqui é que foi criada a expectativa de que isto ia ser tudo muito fácil e rápido”, insiste. Por fim, tranquiliza os mais inquietos: “O facto de aparecer fumo não quer dizer que há fogo, mas o facto de aparecer fumo obriga a investigar se há fogo. O que não pode acontecer é ignorar o fumo”. Assim, sobre a “má notícia”, Miguel Castanho conclui que seria melhor se não tivesse acontecid,o mas “não é o fim de nada”. “Não é uma derrota, é um revés”, remata.
Num comunicado de imprensa divulgado esta quarta-feira, a autoridade nacional para o medicamento, Infarmed, esclarece também que a suspensão do ensaio clínico serve para investigar a reacção adversa verificada num dos participantes e a sua relação com a administração da vacina. “Importa referir que a realização de ensaios clínicos durante o desenvolvimento de qualquer medicamento, incluindo vacinas, para além de uma avaliação da sua eficácia, tem também o propósito, principalmente nas primeiras etapas, de identificar possíveis reacções adversas nos participantes, bem como o seu grau de gravidade e mais importante a sua causalidade”, refere ainda o comunicado, garantindo que, “caso sejam detectados efeitos colaterais graves nas vacinas em avaliação, estas não serão disponibilizadas na União Europeia, sendo importante referir que as vacinas continuarão a ser alvo de um rigoroso processo de monitorização mesmo após a sua autorização”.