Em Lisboa dizem ser seu. Em Pádua reclamam-no para si. Não, ainda não estou a falar do salame de chocolate.
Tem havido acesa disputa histórica relativa à figura de Santo António, famoso frade franciscano e Doutor da Igreja do século XIII, exímio orador, pregador aos peixes e posterior padroeiro de ambas as cidades.
Igualmente disputada – e talvez com a mesma emoção acalorada, que isto da doçaria assume não poucas vezes laivos de fanatismo religioso (nem que seja pelo dito pecado mortal da gula) – é a proveniência do salame de chocolate.
Os italianos dizem ser invenção sua, os portugueses puxam a brasa à sua sardinha (como tão bem fazemos nas festas do santo atrás mencionado, e não só). Bom, em rigor deve aqui ressaltar-se o facto de alguma literatura italiana admitir a dúbia ou dupla origem, coisa que por cá não encontra adeptos. O que é nosso é nosso. Afinal não dissera o mais famoso dos romanos, o imperador Júlio César, referindo-se aos lusitanos, que “há nos confins da Ibéria um povo que não se governa nem se deixa governar"?
Pois bem, se em Itália se coloca este cenário, quem somos nós para duvidar? Sim, o salame de chocolate é uma invenção portuguesa. De acordo?
Tiradas as dúvidas, teremos talvez de fazer uma petição para reverter a situação embaraçosa de este doce estar inscrito na lista de Prodotti Agroalimentari Tradizionali Italiani, um tipo de denominação de origem protegida (figura como produto número 195 da região da Sicília). Por terras lusas não, embora marque presença em múltiplas pastelarias, bares desta ou daquela instituição ou em quase todas as máquinas dispensadoras de merendas rápidas, quer estejam em escolas, estações de metro ou hospitais.
Voltaremos adiante à questão da origem.
Primeiramente devemos debruçar-nos noutro ponto, talvez pouco ou nada necessário para um cidadão português (ou, em boa verdade, italiano): em que consiste então o salame de chocolate?
Trata-se de um doce caseiro ou industrial relativamente simples e rápido em termos de confecção, que incorpora uma pasta de chocolate, manteiga, açúcar e ovos em proporções variáveis, que se amassa com bolacha Maria triturada grosseiramente, e que se enrola num formato cilíndrico ligeiramente achatado, para depois ser cortado em fatias. O aspecto destas, pela incrustação das bolachas, faz então lembrar um salame de carne, caracteristicamente marmoreado de pedacitos de gordura. Em Itália, onde se tornou tradição saboreá-lo por ocasião das festas do Natal e Páscoa, incorpora por vezes frutos secos, versão igualmente apreciada no Brasil, onde lhe chamam palha italiana.
Por cá, este doce popularizou-se durante as décadas de setenta e oitenta do século XX, não existindo praticamente casa que o não exibisse numa festa de aniversário.
Para esta popularidade contribuíram indubitavelmente a facilidade de preparação, já que se trata de uma sobremesa que não necessita de forno (pelo que poderia ser elaborada por uma criança, realidade vivenciada por muitos de nós), e a simplicidade dos ingredientes.
Destes, o mais evidente é, claramente, o chocolate, durante anos recomendado derreter em banho-maria e mais tarde amplamente substituído por chocolate em pó, uma vez mais ao serviço da rapidez e facilidade.
É na famosa e há muito desaparecida revista de culinária Banquete (1960-1974), sob a chancela do Gás Cidla e com direcção de Maria Emília Cancella de Abreu, que vamos encontrar a primeira ocorrência da receita, em Julho de 1962, embora com claras diferenças relativamente à que hoje todos conhecemos. E, se dúvidas restassem quanto à sua origem (o vocábulo salame dificilmente nos remete para a gastronomia nacional, levantando o véu da suspeita de plágio ou imitação), surge-nos a denominação primitiva do doce: paio de chocolate.
Todavia, aqui a amêndoa foi precursora da bolacha Maria e o mel tomava a vez do açúcar. Sugere-se que se embrulhe o rolo de preparado em papel pardo e, depois de solidificado, em papel de prata, atando-se de ambas as vezes, “para dar a ideia de se tratar de um paio”. Este formato, ligeiramente diferente do actual (que dispensa o fio grosso), aproxima-se da receita italiana, cujos esmero e tradição vigoram ainda nos dias de hoje. Aí, o salame di cioccolato ainda apresenta visualmente uma clara mimetização daquilo que o nome sugere, não apenas ao corte (como, aliás, também acontece na receita portuguesa), mas também na aparência exterior.
A receita apresenta-se na revista como proposta ou oferta publicitária do conhecido chocolate culinário Belleville (nome francês pomposo para harmoniosamente combinar com a designação “chocolate baunilhado fino"), outrora produto da fábrica Favorita e ainda hoje presente nas prateleiras dos supermercados, muito antes de o Pantagruel vir a lume – ou melhor, banho-maria (fá-lo-ia apenas em 1982, pelas mãos da Imperial, aquando do quinquagésimo aniversário da empresa).
Cinco anos depois, a mesma receita voltaria a aparecer na Banquete, em Maio de 1967, em resposta a um pedido de uma leitora, o que atesta a popularidade do doce. Contudo, teríamos de esperar uma década para vermos em publicação o salame de chocolate na versão que hoje conhecemos. Aconteceria a 7 de Dezembro de 1977, figurando na popular revista Tele Culinária e Doçaria, saída do prelo no ano anterior, com direcção do famoso Chefe Silva.
Desta feita, o chocolate de barra seria já substituído pelo mais prático chocolate em pó. A receita é, assim, em tudo semelhante à que ainda hoje vigora, ainda que o Chefe Silva recomende picar as bolachas: “Se não quiser passar as bolachas pela máquina de picar, esmague-as; só que picadas acho que ficam melhor”. Termina humoristicamente escrevendo: “Também pode embrulhar o papel prateado directamente sobre o papel vegetal; mas é papel a mais”. Pareceu esquecer-se que mais valia vir papel a mais do que perder-se o efeito “salame” quando se fatiasse a iguaria.
Eis então o outro ingrediente chave: a bolacha Maria (ou, em Itália, qualquer biscoito ou bolacha secos), durante décadas artigo fundamental de toda e qualquer despensa portuguesa.
Como abordado em outro artigo da Fugas, versando o Bolo de Bolacha, talvez importe aqui desfazer o mito da portugalidade desta bolacha tão querida ao nosso paladar. O nome afigura-se indubitavelmente português e como várias gerações a conhecem desde tenra idade (quantos de nós não comeram papa de bolacha Maria, amassada com banana e sumo de laranja?) torna-se assaz estranho não a considerarmos nossa.
De facto, não é.
A Marie Biscuit foi criada em 1874 por um padeiro inglês da empresa de confeitaria Peek Freans, em jeito de homenagem ao casamento do Duque de Edimburgo com a grã-duquesa Maria Alexandrovna da Rússia. A título de curiosidade, a Peek Freans viria a destacar-se em outras reais ocasiões, tendo sido convidada a conceber e confeccionar os bolos de casamento tanto da rainha Isabel II, em 1947, como de Carlos e Diana, trinta e quatro anos depois. Voltando à bolacha Maria, o seu sucesso retumbante rapidamente ultrapassou fronteiras. Em Espanha foi mesmo de suma importância para a sobrevivência generalizada em tempos conturbados da guerra que dividiu nuestros hermanos, de 1936 a 1939, conhecendo após a mesma um boom ainda maior e passando a simbolizar a recuperação e prosperidade do país (um excedente na produção de cereais conduziu à possibilidade da sua produção massiva e consequente baixa de preço).
Voltando ao Reino Unido, afiança-nos Darren McGrady, antigo chef pessoal de Isabel II, que o Chocolate Biscuit Cake é o bolo preferido da rainha, que o manda transportar para Windsor quando sobra em Buckingham. Terá passado este gosto ao neto William, que o escolheu como bolo de noivo. Bolo que mais não é do que um salame de chocolate maior, embora num formato diferente. Será alheia a este curioso facto uma das designações italianas para o nosso acepipe – Salame Inglese?
O sucesso da sobremesa ou guloseima junto dos mais novos ficou patente em ambos os países que reclamam a sua patente, passe o trocadilho. De facto, tanto Portugal como Itália procuraram atrair um público infantil para a novíssima criação gastronómica da segunda metade do século, passando a ideia de ser possível e exequível uma aventura na cozinha, sem pressupor perigos de maior, porquanto dispensasse três “efes"-pesadelo das mães: facas, forno e fogão.
Em 1970, a editora italiana Mondadori publicava um livro juvenil que se tornaria um sucesso de vendas, Manuale di Nonna Papera (a Vovó Donalda, em português). Nele figurava uma receita destinada aos mais novos, Salame Vichingo, – comummente recordada com nostalgia por uma vasta faixa adulta da população italiana –, designação que veio de alguma forma suavizar a que dava pelo nome Salame Turco (esta fazia apelo não à origem do doce, mas à cor do mesmo, que fazia lembrar aos italianos os povos invasores mouros, numa referência agora pouco politicamente correcta).
Por cá, o chocolate em pó Nesquik, famoso produto do igualmente famoso império Nestlé, ofereceria, por sua vez, ao público de tenra idade brindes que apelavam ao consumo, em eficazes manobras publicitárias e promocionais.
Foi o caso da agenda Cangurik, inserida em 1983 dentro de cada lata ou embalagem, que apresentava a simpática mascote marsupial cor-de-laranja na sua rotina diária, em tudo igual à de uma criança de dez anos. E é na secção dedicada à hora do lanche que nos é oferecida a receita do salame de chocolate.
Enfim, português ou italiano – vá, agora sem pretensiosismos ou sardinhas no nosso braseiro! –, a verdade é que o salame de chocolate está aí para durar e reinar (outro dos muitos nomes que o nosso “rival” lhe atribuiu é Salame del Re). Foi entretanto adoptado por outros países, tão gulosos quanto o rosto e a bota da Europa: na Grécia é chamado Mosaiko, na Turquia Mosaik Pasta Tarifi, na Roménia Salam de Biscuiţi, em Espanha Morcilla de Chocolate...
E faz as delícias de miúdos e graúdos, onde quer que o encontremos.