Água privada é a mais cara
Para matar a sede sem secar a carteira o caminho deve ser o da reversão das concessões, a única forma de acabar com o abuso.
A água é um bem essencial à vida, não a podemos dispensar. Por ser imprescindível, há muito que se tornou num recurso apetecível para a apropriação privada: é um negócio garantido. A privatização de vários sistemas municipais de abastecimento de água comprovou esta realidade criando monopólios naturais que se tornaram muito benéficos para os privados e muito prejudiciais para as populações.
As conclusões são da Entidade Reguladora de Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) e baseiam-se nos dados conhecidos de 2019. Segundo essa análise divulgada há dias, dos 25 municípios onde a gestão da água é mais cara, 24 são de responsabilidade privada. A conclusão é que os municípios asseguram preços mais baratos quando gerem diretamente o abastecimento de água.
A diferença de preços praticada entre locais onde o abastecimento de água foi privatizado e onde se manteve público é abissal: por exemplo, em Santo Tirso, onde a gestão é feita pela empresa privada Indaqua, a fatura anual paga por uma família é seis vezes superior ao que pagaria a mesma família na Régua, onde o abastecimento é público. O valor anual médio pago por uma família em Santo Tirso é de 265,49€, enquanto na Régua é de apenas 43,20€. E estes valores apresentados pela ERSAR não incluem as tarifas de saneamento, de resíduos sólidos ou as restantes taxas e taxinhas associadas, que fazem duplicar as faturas.
O estudo da ERSAR confirma o que já tinha sido dito em 2014 pelo Tribunal de Contas (TC). Nessa altura, após audições a 19 contratos de concessão de água, o TC afirmou que estes não trazem nenhum benefício para o consumidor ou para as autarquias. Os contratos mostravam as consequências ruinosas da privatização: os consumidores pagam mais caro por um serviço pior, os privados lucram com a água que é de todos. Os contratos são tão draconianos para os privados que estes até recebem pela água que não sai da torneira: se o consumo baixar face ao previsto, o contribuinte paga a diferença. É um negócio em que a fava sai sempre às populações.
A disparidade de preços e o seu elevado custo nos municípios que privatizaram o serviço de abastecimento de água coloca em causa até o estabelecido na Diretiva-Quadro da Água: “princípio do valor social da água, que consagra o acesso universal à água para as necessidades humanas básicas, a custo socialmente aceitável, e sem constituir fator de discriminação ou exclusão”. No entanto, este é o tipo de incumprimento para os quais a Comissão Europeia faz vista grossa, até porque muitos dos interesses privados envolvidos são estrangeiros.
Este negócio da água tem deixados secos os cofres das autarquias. O exemplo do município de Barcelos é paradigmático. O contrato de concessão celebrado quando o PSD estava à frente do executivo municipal é leonino na defesa dos interesses privados e obriga a autarquia a pagar 172 milhões de euros aos privados até 2035. Risco zero para os privados, risco máximo para as pessoas.
A sensibilidade social das empresas privadas deste setor ilustra-se pela vontade de aumentar o preço da água em plena pandemia, como aconteceu em Oliveira de Azeméis. Enquanto no país se discutia e aprovava legislação para garantir o acesso a bens e serviços essenciais, os privados apenas se preocupavam com o seu lucro.
O preço elevado da água tem motivado a contestação das populações afetadas. A oposição mais recente foi em relação à Águas do Pinhal Interior Norte, que abrange 11 municípios dos distritos de Coimbra e Leiria. O aumento do preço da água chegou a ser de 30%, o que explica o descontentamento e esperemos que seja suspenso.
A água privada custa caro às populações. Para matar a sede sem secar a carteira o caminho deve ser o da reversão das concessões, a única forma de acabar com o abuso, garantindo a gestão pública séria deste bem estratégico. Mas há mais para fazer: no contexto de crise económica e social que estamos a enfrentar é preciso automatizar a aplicação da tarifa social da água garantindo que ninguém fique para trás, bem como criar um mecanismo para apoiar as famílias que acumularam dívidas por carência económica e garantir que não ficam privadas de acesso a este bem essencial. Passos fundamentais para garantir o acesso universal à água.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico