“Saí de casa para o hospital e não vi mais ninguém”: o testemunho de Bruno, que aos 36 anos esteve 20 dias nos cuidados intensivos
Bruno Lopes não estranhou as dores de cabeça que julgava serem provocadas pela troca de turnos, nem a febre repentina a meio da noite. Mas, quando acordou, a tosse compulsiva fê-lo ligar para o SNS 24, que o encaminhou para o hospital de Santo Tirso. Três hospitais e quase um mês e meio depois, o segurança de 36 anos voltou a casa. Um testemunho na primeira pessoa de alguém que recuperou da covid-19, mas nunca esperou “que a doença fosse tão forte como foi”.
Foi uma questão de dois ou três dias, entre ter reparado nos primeiros sintomas e chegar ao hospital. Dei entrada a 16 de Abril, no Hospital de Santo Tirso. Era uma quinta-feira. Dois dias antes andei com dores de cabeça. Normalmente, por causa do trabalho, como faço turnos rotativos, tenho bastantes dores de cabeça. Quando estou a trabalhar de noite e começa a vir a luz do dia, por exemplo. Mas, nesse dia, andei bem, nem me doeu a cabeça, deitei-me bem.
Eram três da manhã e acordei cheio de febre. Fui à cozinha e medi a temperatura. Estava com 38 graus. Tomei um Ben-U-Ron, voltei para a cama e adormeci. De manhã, acordei com tosse compulsiva. Notei que me saiu expectoração com o que parecia ser sangue. Foi só aí que fiquei mais preocupado. Liguei para a Saúde 24 e disseram-me para me dirigir ao hospital em Santo Tirso, que iriam comunicar a minha chegada. Eram oito da manhã e atenderam-me à primeira tentativa.
Cheguei ao hospital no meu carro, sozinho, de máscara. Entrei e falei com a pessoa que estava na recepção. Disse-lhe o que tinha e pediram-me para aguardar na sala de espera das urgências. Depois, fui chamado, fiz o testei e fiquei lá até receber o resultado. De noite, ainda cheguei a iniciar oxigenoterapia. No dia a seguir, as coisas foram piorando.
De manhã, chegaram à minha beira e disseram-me que o resultado do teste era positivo. Disseram-me que ia ser transportado para Famalicão, porque era lá a área de atendimento ao doente covid-19 da região. Nessa altura, tinha tosse e já estava com a máscara de oxigénio, mas conseguia movimentar-me e fazer tudo.
Quando fui para Famalicão, passei uma noite na enfermaria para doentes com covid-19. Custou-me muito a passar a noite. O oxigénio já estava quase nos 15 litros por minuto, que é o [débito] máximo. Fui da enfermaria para a unidade de cuidados intermédios em Famalicão, onde passei mais uma noite. Aí já não conseguia fazer nada. Custava-me muito a respirar. A febre descia com a medicação, mas passadas quatro horas estava outra vez nos 38°C. No dia a seguir, fui transportado para os cuidados intermédios no Hospital de São João.
Lá, precisei de auxílio respiratório com oxigénio e deram-me medicação para a febre. E eu passei lá a noite. Quando cheguei, depois de me colocarem oxigénio suplementar, até me senti melhor. Mas a falta de ar piorou à hora de ir dormir. No dia a seguir, disseram-me que ia para os cuidados intensivos. Fiquei lá 20 dias, sempre acordado, sempre com febre. Não fui entubado. O médico disse-me que iam fazer um teste comigo, porque eu era das poucas pessoas que chegavam ali e ainda estavam acordados. Se não quisesse, disseram-me, induziam-me o coma.
Os primeiros cinco dias foram muito complicados. Foi difícil, estava a ver que aquilo não passava, andava sempre com febre alta. No dia a seguir, iniciei o ECMO [sigla em inglês para Oxigenação por Membrana Extracorporal, um pequeno aparelho que aspira o sangue e o oxigena antes de o devolver ao organismo].
Obrigavam-me a levantar-me da cama e a sentar-me no cadeirão. Eu estava deitado e só levantar o tronco me custava mesmo muito, faltava-me muito o ar. Fazia as refeições como se estivesse nos cuidados intermédios, mas demorava muito a comer. Tirava a máscara de oxigénio, punha qualquer coisa à boca e punha a máscara outra vez. Tinha o ECMO sempre ligado nas virilhas e obrigavam-me a descer e a subir da cama e a fazer pedaleira de mão [exercícios de reabilitação] para não perder massa muscular, como acontece aos doentes internados. Queriam-me manter acordado para tentar ter outro tipo de melhorias. E a verdade é que eu recuperei muito mais depressa.
Depois desses 20 dias, voltei para os cuidados intermédios durante mais uma semana. Davam-me medicação para dormir, tinha a máscara de oxigénio e foram-me reduzindo o fornecimento de oxigénio aos poucos. Comecei a sentir que isto estava a desaparecer. A 11 de Maio, fiz um teste e deu negativo. No dia a seguir, deu positivo. Ainda não tinha acabado.
A 13 de Maio fui transferido para o Hospital de Famalicão, onde fiquei mais uma semana. Tinha perdido massa muscular e custava-me a andar ou a estar muito tempo de pé. Ainda tinha alguma tosse. Eu fazia fisioterapia respiratória, uma técnica de respiração que me obrigava a inspirar e expirar e isso forçava-me a tosse. Não conseguia inspirar normalmente, teve de ser aos poucos.
Deixaram-me sempre ter o meu telefone e conseguia fazer videochamadas com a minha família. Mas o próprio hospital trazia um tablet para as pessoas que estivessem acordadas, caso assim o desejassem, falarem com as suas famílias. Eu saí de casa para o hospital e nunca mais vi mais ninguém. Fiquei um mês e meio sem visitas, até ter alta, a 20 de Maio.
Nem a minha esposa nem a minha filha tiveram sintomas, mas eu estava preocupado, vendo a forma como fiquei, e queria que fossem testadas. Mas a Saúde 24 disse que apenas se fazia o teste se apresentassem sintomas, a não ser que quiséssemos fazer pelo privado.
Nós, desconfiar, não desconfiámos. Eu sou novo, não tenho problemas de saúde. Nunca pensei que não poderia ter [esta doença]. Pensava sempre era que, se a tivesse, não ia ser tão forte como foi. Ouvíamos falar, víamos as notícias, mas eu tinha cuidados. Só eu é que ia às compras, apesar de estarmos a trabalhar os dois fora de casa. A fábrica onde trabalhava estava em layoff e só lá estávamos eu e mais quatro colegas. No sítio onde estávamos a trabalhar tínhamos uma área onde ninguém podia entrar, falávamos à distância, tínhamos desinfectante para as mãos e viseiras. Fazíamos a passagem de serviço no exterior e desinfectávamos tudo antes de entrar. Sentia-me seguro. Na altura, falei com o meu chefe para avisar os meus colegas, dois deles são asmáticos e eu estava preocupado. Desloco-me de casa, e era casa trabalho, tirando as idas às compras. Não sei onde fui infectado.
Perdi 15 quilogramas. Mudei um pouco a minha alimentação, porque ainda tenho de perder peso. Tinha obrigatoriamente de fazer os exercícios respiratórios que o terapeuta me deu no hospital, para fazer em casa. Agora, tenho de fazer os exames para ver se não ganhei fibroses [tecido cicatricial crónico]. Pela idade, o médico disse-me para não estar preocupado, que iria conseguir recuperar a 100%. Mas que só depois dos testes me poderia dar uma certeza.
Ao ouvir a minha história, os meus amigos começaram a tomar mais precauções. Eles sabem que sou uma pessoa que raramente fica doente, tenho 1,93 metros e um porte físico forte. A alimentação não era cuidada, agora tento mais que seja, algo que não fazia muito. A única coisa que me prejudicou foi o excesso de peso.
Volto ao trabalho esta semana. Estou com vontade, já estou farto de estar em casa. Não tenho receio, mas vou tentar ter ainda mais cuidado, apesar de achar que já tinha cuidados. Só não usava a máscara. Ia ao supermercado e, na altura, a única coisa que existia era o distanciamento. Se fosse agora, claro que tinha começado a usar mais cedo. Se calhar ajudava a não ter passado por isto.
Diria às pessoas jovens para, se não se preocuparem por elas, se preocuparem com a família. Eu já estava sem ver os meus pais e os meus sogros há algum tempo. Para nós pode ou não ser nada, mas para os nossos pode ser fatal.