Bazuca com mira afinada
O atual momento histórico é muito singular. Nunca o futuro dependeu tanto do que coletivamente formos capazes de pensar e planear no presente.
Nos últimos quatro anos, Portugal assegurou uma trajetória de convergência real com a União Europeia, com crescimento do emprego, consolidação das finanças públicas e sustentabilidade do endividamento. O crescimento económico e, em particular, das exportações deveu-se às empresas, aos trabalhadores, às instituições, mas também às opções de políticas públicas. A covid-19 paralisou parcialmente a atividade económica, a produção e o consumo, gerando um contexto fortemente recessivo. Esse contexto é europeu e global e, assim, a proteção de rendimentos e a retoma da economia encontra-se mais dependente da procura e das políticas internas. No entanto, o enquadramento europeu não deixa de ser relevante, assumindo os fundos comunitários um papel insubstituível.
Tem-se procurado compatibilizar os efeitos de curto prazo com os de médio e de longo prazo no que à utilização desses fundos diz respeito. Aceleraram-se pagamentos aos beneficiários e estabeleceu-se moratória para pagamento de subsídios reembolsáveis, melhorando a liquidez dos promotores e a viabilidade financeira dos investimentos. Entre março e abril, os pagamentos do Portugal 2020 ascenderam a mais de 500 M€, sendo nos Sistemas de Incentivos mais do dobro do registado no período homólogo, enquanto as empresas viram derrogados pagamentos de 71 M€. Por outro lado, foram aprovados projetos essenciais no combate à covid-19, nomeadamente para testes, ventiladores, equipamentos de proteção individual e investigação científica. Foram ainda abertos concursos para apoio - a fundo perdido - a microempresas e PME, por forma a adaptarem as suas atividades às exigências da covid-19. Esta (r)evolução silenciosa foi possível sem excesso de burocracias, devido ao empenho dos dirigentes e dos funcionários da administração pública, na sua grande maioria em regime de teletrabalho.
Passada a fase do confinamento, colocam-se dois novos desafios. O primeiro respeita à reprogramação do PORTUGAL 2020, que se encontra em curso. É necessário aproveitar toda a margem de manobra estabelecida pela UE para resposta aos efeitos da atual crise pandémica. O aumento do cofinanciamento comunitário, por via, quer do alargamento das elegibilidades da despesa, quer das taxas de cofinanciamento, é fundamental para a redução da contrapartida nacional, continuando-se a melhorar a liquidez das instituições beneficiárias, públicas e privadas, como forma de sustentação do investimento programado e aprovado. É importante continuar a simplificar sem perdas de rigor na gestão e controlo dos fundos comunitários.
O segundo é o mais crítico. Para o período de programação das políticas da União Europeia 2021-27, à dimensão financeira do habitual Quadro Financeiro Plurianual, acrescem 750 mil milhões de euros do Plano de Recuperação da União Europeia (Next Generation EU), dois terços sob a forma de subvenções aos Estados-Membros e os restantes como empréstimos. O Governo português reuniu condições não só para manter o atual nível de financiamento da Política de Coesão e da Política Agrícola Comum como também para o reforçar através do referido Programa de Recuperação, contrariamente ao verificado no atual período de programação (2014-2020), que registou perdas da ordem dos 10% relativamente a 2007-2013.
Tudo aponta para que se venha a dispor de uma arma, de uma “bazuca” para enfrentar a crise, pelo que, afinar a sua mira constitui agora o desafio que convoca todos a dar o seu contributo - para termos as melhores respostas para a retoma do investimento, do crescimento económico e do emprego. É, assim, indispensável a preparação atempada do Acordo de Parceria, do Plano Estratégico da Política Agrícola Comum e do Plano de Recuperação para melhoria das condições de financiamento da economia portuguesa. Os trabalhos de preparação do PORTUGAL 2030 foram desenvolvidos num contexto profundamente diferenciado do atual. Sem prejuízo da resposta aos quatros desafios estruturais estabelecidos – combate às desigualdades, transição digital, alterações climáticas e demografia - é necessário revisitar o diagnóstico e as propostas de políticas públicas, considerando os efeitos territorial e sectorialmente assimétricos da atual crise resultante da covid-19, função das diferentes especializações produtivas regionais e da menor capacidade de adaptação de atividades económicas a uma previsível economia de baixo contacto (Low Touch Economy), como o turismo, e a necessidade de reforço do SNS para enfrentar situações extremas e de congestionamento.
Este trabalho não dispensa ninguém. É necessária participação pública e envolvimento ativo dos agentes sectoriais e territoriais. O Governo assumiu o firme compromisso de reforço da legitimidade democrática das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) para que possam assumir em plenitude o seu papel de centros de planeamento estratégico e de desenvolvimento regional, desde logo no próximo ciclo de programação (2021-2027). Essa participação e esse envolvimento deve ser assegurado nos seus Conselhos Regionais e Conselhos de Coordenação Intersectorial, para além da integração das futuras presidências na Comissão Interministerial de Coordenação do Acordo de Parceria, à semelhança dos atuais representantes dos Governos das Regiões Autónomas.
O atual momento histórico é muito singular. Nunca o futuro dependeu tanto do que coletivamente formos capazes de pensar e planear no presente. “Para se avaliar a esperança, há-se de medir o futuro”, como disse o Padre António Vieira.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico