Histórias da Construção Europeia [5/6]: Uma nova entidade chamada Europa
Apesar de todas as vicissitudes, começaria na Europa, e acima das Nações, uma nova experiência que, a resultar, faria sair a guerra do vocabulário europeu e iria criar um novo conceito de identidade para um crescente número de cidadãos deste traumatizado Continente. Quinto capítulo da série “Histórias da Construção Europeia”, do economista José Veiga Sarmento, a partir das memórias de Jean Monnet.
Ratificado o Tratado que criou a CECA, vai ser agora o tempo de dar vida às decisões e colocar em actividade as diferentes instituições aí previstas: a Alta Autoridade, o Conselho de Ministros, o Parlamento e o Tribunal Europeu. Para Jean Monnet, a estrutura da Alta Autoridade teria de ser a de um pequeno núcleo responsável pela organização e a animação dos dossiers, mas com a capacidade de poder utilizar os recursos das administrações nacionais. Assim se pretendia que fosse o ADN da nova Administração Europeia, cuja instalação arranca no Luxemburgo em Agosto de 1952.
Monnet é o presidente da Alta Autoridade, enquanto o vice-presidente é Hallstein, em representação da CDU democrata-cristã, e que veio acompanhado por um sindicalista social-democrata. No colégio dos comissários só destoava o belga, um professor de economia tão liberal nas suas convicções que Monnet temeu que ele viesse a repudiar todos os princípios pelos quais a CECA havia sido criada.
Mas, como diz o ditado, a falar é que a gente se entende, pelo que todos acabaram por trabalhar com um entusiasmo imenso na construção da nova entidade supranacional, deixando de lado toda e qualquer inclinação nacional. O colectivo de nove homens provinha de seis países, falava quatro línguas diferentes e representava um verdadeiro microcosmo, repositório da multitude de diferenças culturais. E o exercício de coabitação, com arestas mas dentro de objectivos comuns, começava.
Para quem hoje julga que a posição americana era contrária ao projecto europeu, vale a pena citar a saudação formal que o secretário de Estado d’Acheson envia no momento da inauguração da CECA:
“Os EUA têm a intenção de dar à CECA um apoio forte, justificado pela importância da unificação política e económica da Europa. De acordo com o Tratado, os EUA tratarão, a partir de agora, dos assuntos que digam respeito ao carvão e ao aço, com a Comunidade.”
Esta identificação dos dirigentes americanos com o processo de unificação europeu resultava também do entendimento que tinham de que o texto do Tratado da CECA se inscrevia na tradição filosófica dos Founding Fathers dos Estados Unidos.
Depois de instalada a Alta Autoridade, faltava arrancar com o Conselho de Ministros e o Parlamento, que irão ter as suas primeiras reuniões em Setembro de 1952. Para Monnet, no discurso que proferiu perante o novo Parlamento, o caminho era claro:
“A Europa terá de ser feita de forma idêntica ao aparecimento das nações, criando uma nova forma de relacionamento entre as nações equivalente à que foi estabelecida entre os cidadãos de qualquer país democrático, ou seja, a igualdade organizada no seio de instituições comuns. O processo que agora começa será longo e difícil e não poderá ser unicamente o produto das boas vontades. São necessárias regras. Os acontecimentos trágicos porque passámos tornaram-nos mais sábios. Mas os homens passam e, a seguir a nós, outros virão. O que podemos deixar não é a nossa experiência pessoal que desaparecerá connosco. O que lhes temos de deixar são Instituições.”
Meio ano após a inauguração, em Fevereiro de 1953, Monnet tem condições para anunciar que deixara de existir o carvão alemão, belga, francês, italiano ou luxemburguês, existindo unicamente carvão europeu. Qualquer empresa dos seis países poderia negociar como se fosse no seu território nacional, escolhendo o melhor fornecedor e o melhor preço. Acabava o sistema tradicional, montado para restringir a concorrência. A mudança sentida neste importante mercado foi imensa, mas iria deixar logo à vista as dificuldades que resultam das diferenças dos sistemas fiscais. Dificuldades que, como bem sabemos, ainda hoje persistem. Como acreditava Monnet, o sucesso da CECA iria abrir mais tarde o caminho para uma segunda fase, que acabaria por ser consagrada a 25 de Março de 1957 com o Tratado de Roma.
Regressemos, porém, ao início da década de 50: enquanto a CECA afirmava a sua autoridade e utilidade, o projecto da Comunidade Europeia de Defesa (CED) também fazia, com a pressão dos americanos, o seu caminho, primeiro de estruturação militar e a seguir jurídica. Ao contrário do que se temia, foi relativamente fácil aos militares chegarem a acordo, pelo que o projecto de Tratado da futura CED é aprovado a 1 de Fevereiro de 1952 numa reunião da NATO em Lisboa, sendo depois assinado em Paris pelos chefes do Governo dos seis países, a 26 de Maio de 1952.
De facto, entusiasmados com a concretização da CECA, os promotores da CED fizeram evoluir o desenho inicial – em que a CED nascera como um complemento à CECA – para um objectivo mais ambicioso ao nível da federalização. A proposta de Tratado previa mesmo que, no prazo de seis meses, se daria início ao processo de criação de um Estado Federal. Correspondendo ao desejo dos americanos de consolidação militar dos europeus, o que incluía os alemães, o exército europeu funcionaria integrado na NATO e, a esse título, ficaria dependente, para as grandes decisões, do seu primeiro responsável, o Presidente dos Estados Unidos. Nada que não estivesse já estabelecido através da NATO.
Depois de aprovado pelos governos, o Tratado da CED transita para ratificação dos Parlamentos, tendo sido sancionado no Bundestag a 19 de Março de 1953. No entanto, os problemas vão surgir em França, onde no Parlamento, gaulistas e comunistas unidos, apoiados pelos militares e pelos jornais, lançam uma campanha frenética contra o projecto. A crispação contra e a favor da CED divide a meio a sociedade francesa e a ratificação do Tratado vai sendo adiada até que um voto de recusa acaba por ocorrer a 30 de Agosto de 1954 no Parlamento francês, liquidando o projecto. Monnet, que tinha deixado de seguir este projecto para se dedicar à concretização da CECA, chama a atenção para necessidade de que o caminho para a Europa Unida se mantivesse como ele tinha sugerido: lento, feito de pequenos passos e alicerçado no valor que os cidadãos europeus fossem atribuindo aos resultados adquiridos. Fazer saltar a Europa, um aglomerado de desconhecidos que se temiam e odiavam, para atingir, num passe de mágica, o Eldorado, era para Monnet uma ilusão a evitar. Não havia necessidade.
A derrota do Tratado da CED é um revés sério para o movimento federalista. Vai ser necessário descer ao terreno e congregar forças para arrancar de novo. Com a CECA instalada e respeitada pelos Governos e cuja utilidade é amplamente reconhecida, Monnet vai em 1955 apresentar a sua demissão de presidente da Alta Autoridade e regressar a Paris, onde irá relançar a ambição europeia com a criação do Comité de Acção para os Estados Unidos da Europa. No momento de deixar o Luxemburgo, Monnet reúne-se com os sindicatos alemães, que se declaram solidários com as acções de Monnet e lhe vêm dizer que, para eles, o futuro dos trabalhadores está na Europa e que, sem Europa, não haverá paz. Mas Monnet, ciente de que o Partido Social-Democrata alemão sempre combatera as suas iniciativas, questiona os sindicalistas sobre a limitação que os sociais-democratas poderiam impor à sua posição europeísta. A resposta é categórica: os sindicatos alemães querem a Europa e os sociais-democratas terão de evoluir nesse sentido. Estavam, assim, encontrados os primeiros aderentes ao Comité de Acção para os Estados Unidos da Europa. Mas outros se lhes seguirão.
Esse será o objecto do próximo e último capítulo.
Escrito a partir das memórias de Jean Monnet
Próximo artigo desta série: A Reconquista do Projecto Europeu e o Tratado de Roma