“Um polícia bom é um polícia morto” é crime?

Trata-se de um crime de “ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva”. Mas também há uma ofensa a cada um dos agentes ou militares das forças de segurança que se sintam ofendidos na sua honra por tais palavras.

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Escrevo de uma perspectiva estritamente jurídico-criminal sobre o sucedido no passado sábado, dia 6 de Junho, na Av. dos Aliados, no Porto, em que um manifestante empunhava um cartaz onde se lia “um polícia bom é um polícia morto”.

Sobre estes factos dispõe o artigo 240.º, n.º 2 do Código Penal (CP), sob a epígrafe “discriminação e incitamento ao ódio e à violência”, que, “[q]uem, publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação (…): (…) d) incitar à violência ou ao ódio contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos”.

Trata-se de um delito público, sistematicamente inserido nos crimes contra o Estado, mais precisamente “contra a identidade cultural e integridade pessoal”. O interesse juridicamente protegido pela norma, na modalidade da sua prática que para o caso importa, é a protecção da comunidade contra a violência, como forma de garantir a ordem e a segurança públicas, mas denota também marcados traços mais individuais (ainda que de grupo), no sentido da protecção da discriminação.

A discussão em volta da norma não é nova e consiste, mais uma vez para o que aqui interessa, em saber se os factores em relação aos quais o incitamento à violência ou ao ódio são taxativos ou meramente exemplificativos. Se se defender o primeiro sentido, então a conduta em discussão não poderá ser punida por via deste tipo legal de crime, dado que se estava a incitar ou apelar ao ódio (pelo menos) em razão de uma dada profissão ou actividade. Se se propugnar por uma hermenêutica jurídica que considere que aqueles escalões são meros exemplos, então a conduta já cairá no âmbito de protecção típica da norma.

Sem desconhecer a existência de outras posições, como sempre, o jurista tem de lançar mão das suas “ferramentas” de interpretação, começando pelo elemento literal ou gramatical, que depõe, inequivocamente, no sentido de que o legislador pretendeu somente punir os comportamentos que incitassem ao ódio ou à violência quanto àqueles específicos factores.

Mas a letra deve corresponder ao espírito, ou seja, ao elemento teleológico – o que efectivamente se quis proteger. E aqui também nos ajudam os elementos histórico e sistemático (a inserção da norma na estrutura do Código). Ora, ambos depõem no sentido de que se pretendeu somente abranger aquelas hipóteses contadas, por serem as que mais directamente contendem com a discriminação, ou seja, as mais usadas para tratar alguém como diferente, inferiorizando-o. Donde, não pode ser, em meu juízo, por via desta norma que os agentes das forças e serviços de segurança podem ver ressarcido o claro dano que lhes foi infligido.

Acresce que, em Direito Penal, o princípio da legalidade tem de ser observado com um rigor ainda maior que em outros ramos de Direito e um dos seus precipitados é que nullum crimen sine lege (não há crime sem lei escrita, estrita, clara, taxativa e anterior ao momento da prática do facto). Ora, entendo que haveria irremível violação deste princípio se se entendesse que a conduta em análise cabe no preceito do art. 240.º, n.º 2, do CP. Aliás, a sua evolução foi sempre no sentido de aumentar o leque de factores em relação aos quais pode haver incitamento ao ódio e à violência e a profissão lá não consta. E devemos respeitar os mandamentos interpretativos que nos dizem que: a) não pode ler-se uma norma sem que esse sentido encontre na letra da lei o mínimo de expressão escrita e b) temos de presumir que o legislador se soube exprimir de forma adequada e que consagrou as soluções mais acertadas.

O que não significa que o empunhar do cartaz com aqueles dizeres fique sem tutela penal. Desde logo, trata-se de um crime de “ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva” que, previsto no art. 187.º do CP, prescreve no seu n.º 1: “Quem, sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias”. Não tenho dúvidas que os elementos objectivos e subjectivos do delito estão preenchidos. Trata-se de um crime em que basta a participação da Direcção Nacional da PSP (ou de outros serviços de segurança, pois a palavra “polícia”, por sinédoque, não abrange somente a PSP) para que o Ministério Público tenha legitimidade para conduzir o inquérito. Existindo condenação, o tribunal pode ordenar, como pena acessória, que seja dado conhecimento público (através dos media) da sentença condenatória.

Mais mais: entendo que uma coisa é a ofensa ao bom nome da pessoa colectiva, enquanto tal, e outra é a de cada um dos agentes ou militares das forças de segurança que se sintam ofendidos na sua honra por tais palavras. Aí estaremos perante um crime de injúria (porque dirigido aos concretos injuriados), em concurso com outro de difamação (porque toda a gente viu aquelas palavras que são claramente ofensivas da honra profissional), ambos agravados pela publicidade por via da comunicação social, pelo que falamos de penas de prisão até dois anos ou de multa de 120 a 360 dias. Nestes casos basta igualmente a queixa do concreto membro da força policial que se sinta ofendido (poderão ser milhares) e o Regulamento das Custas Processuais isenta-os (como no caso do delito do art. 187.º do CP) de qualquer pagamento ao longo do processo-crime.

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