O crepúsculo de Donald Trump
Os políticos republicanos têm medo do Presidente. Tornaram-se seus cúmplices. Esta semana, coube aos generais desafiar a Casa Branca e garantir a defesa da Constituição. Apoiaram o direito ao protesto pacífico contra “o racismo institucional”.
Donald Trump parece ter entrado na fase crepuscular. Os últimos dias foram marcados por desastres. A mais dura denúncia veio de onde menos se esperava: dos militares. Os generais fizeram uma maciça declaração de fidelidade à Constituição, que foi interpretada como uma demarcação do Presidente e uma reafirmação da democracia. As Forças Armadas americanas têm uma funda tradição civilista. Por sua vez, a América nunca terá estado tão dividida como hoje. E tudo isto a 150 dias da eleição presidencial.
O que marca a situação americana não é a explosão de mais uma crise racial. Esta insere-se num complexo: uma gravíssima crise sanitária, uma recessão económica de dimensão ainda desconhecida, uma política internacional incapaz de competir com a China, enfim, a degradação da imagem americana no mundo. Em nenhum destes temas conseguiu Trump elaborar estratégias convincentes. Uma política de deliberada polarização ajuda-o a manter a sua base de apoio e o controlo absoluto do Partido Republicano.
É neste quadro deprimente que entram em cena os generais. Numa posição de fraqueza e desorientação perante os protestos contra o assassínio de George Floyd (25 de Maio), Donald Trump decidiu exibir força da forma mais infeliz: anunciando que ia pôr o Exército nas ruas. Avisou os governadores de que o general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Interarmas, coordenaria a repressão dos protestos.
O fim do silêncio
Na segunda-feira, dia 1 de Junho, Trump mandou dispersar com gás lacrimogéneo uma manifestação pacífica na Praça Jefferson, limpando o caminho para o seu passeio até à vizinha “igreja dos presidentes”, para uma photo-op. Após se mostrar de Bíblia ao peito, fez-se fotografar ao lado do secretário da Defesa, Mark Esper, e de Mark Milley, este em farda de combate. Bíblia e militares: entenda-se a mensagem eleitoral. Ignora-se o que se passou nos quartéis. O próprio Milley, muito embaraçado, declarou a uma televisão: “Toda a gente tem o direito de protestar. A Primeira Emenda [da Constituição] é sagrada. É o direito de o povo americano a protestar, mas protestar pacificamente.”
No dia 2, a revista The Atlantic publicou um violento artigo do respeitado almirante Mike Mullen, antigo chefe do Estado-Maior Interarmas: “Não posso permanecer em silêncio.” Ficou “doente” com o que viu na Praça Lafayette. Se condena a violência, denuncia o “racismo institucional”. Não admite o risco de politização das Forças Armadas. “Demasiados países e demasiadas opções políticas domésticas foram militarizadas. E demasiadas missões militares tornaram-se políticas. Este não é um tempo para manobras. Este é um tempo para liderança.”
No dia seguinte, na mesma revista, o general James Mattis, ex-secretário da Defesa, acusava Trump de ser uma ameaça à Constituição e de ser, na sua vida, o primeiro Presidente que “tenta dividir” os americanos. Mattis era considerado o único “adulto na sala” da Administração Trump. Defendeu o direito ao protesto dos manifestantes após o assassínio Floyd. O uso doméstico do Exército cria “um falso conflito entre os militares e a sociedade civil”. No mesmo dia, outro general, John Allen, antigo comandante da NATO e actual presidente da Brookings Institution, publica um longo texto cujo mote é: “Talvez estejamos a testemunhar o princípio do fim da democracia americana, mas ainda há um caminho para travar a queda.”
Entretanto, o secretário da Defesa, Mark Esper, surge inopinadamente a declarar aos jornalistas que não subscreve o plano de Trump de enviar as tropas para a rua. Na véspera, Esper mandara avançar militares para Washington. No dia seguinte, voltavam à base.
Como é clássico, os generais na reserva falam em nome dos do activo. E, desta vez, no dia 2 de Junho, toda a hierarquia militar se lembrou de escrever aos subordinados. O general Milley começa por evocar a “o ideal da Constituição” e garante que a Guarda Nacional está a actuar sob as ordens dos governadores. Os chefes da Marinha, da Força Aérea e do Exército escreveram aos seus homens, em especial aos afro-americanos, solidarizando-se com o seu sofrimento.
Os cúmplices
O significado desta querela pode ultrapassar em muito os militares e acelerar o declínio de Trump. A Atlantic antecipou, na segunda-feira, a publicação de um ensaio da jornalista e historiadora Anne Applebaum, intitulado “A História julgará o cúmplice” (History will judge the complicit). Está fora de causa resumir um texto longo e complexo. Para lá do trabalho como jornalista de assuntos internacionais, Applebaum é autora de livros sobre o Gulag ou a sovietização da Europa de Leste.
A surpresa é descobrir um paralelo entre a “resignação” e os “cúmplices” nos países comunistas pós-Estaline, na Rússia de Putin ou dentro do Partido Republicano americano. São casos diferentes. “Nas extremas ditaduras como a Alemanha nazi ou na Rússia de Estaline, a pessoas temem pela vida. Na Alemanha Oriental pós-1950 ou na Rússia de Putin, as pessoas temem perder o emprego ou o seu apartamento.” Mas nos Estados Unidos é difícil imaginar que o medo motive seja o que for. Mas não é verdade. O mistério não são os trumpistas convictos. O enigma é outro: como é que a elite republicana se deixou “aterrorizar” por Trump renegando princípios e convicções? Estes são também “cúmplices”.
“Eles não têm medo da prisão (…), mas de serem atacados por Trump no Twitter”, diz à autora um velho republicano. “Têm medo de serem ridicularizados, ou embaraçados, como Mitt Romney o foi. Têm medo de perderem os seus círculos sociais, de deixarem de receber convites para as recepções. Têm medo de que os seus amigos e apoiantes, e em especial os financiadores, os abandonem.”
Anota Edward Luce, correspondente do Financial Times: “Trump tem um desejo ardente de ser reeleito. Na sua cabeça, a derrota levaria ao desmantelamento da Organização Trump, aos tribunais e uma possível prisão. Face à escolha entre sabotar a democracia americana ou uma passagem pelas salas de audiência, não tenho dúvidas de para onde os seus instintos o empurram. Têm de ser outros a pará-lo.”
Trump exerce uma fatal intimidação sobre o partido. A intimidação deixa de funcionar quando alguém descobre que “o rei vai nu”. Que efeito terá o desafio dos generais? Há motivos para imaginar que este possa ser um ponto de viragem. O Presidente perdeu a face. Seria irónico que coubesse aos generais dar o sinal precursor do crepúsculo de Donald Trump.