A fraude do primeiro encontro
Os enamorados principiantes são fraudulentos amorosos, que bebericam copos de vinho como se estivessem completamente à vontade na presença do outro, e compõem sem querer um quadro romântico.
Quando subitamente alguém se destaca, de alguma forma, da vulgaridade com que encaramos a maior parte dos seres humanos que se vão cruzando connosco, sentimos vontade de conhecer melhor essa pessoa e de nos darmos a conhecer. A experiência do primeiro encontro, caso a pessoa nos puxe algum cordelinho inexplicável e invisível, acarreta necessariamente nervosismo. Quanto maior a carga (ou seja, a experiência) que trazemos às costas, mais difícil será lidar com aquilo a que chamamos expectativa. Não só estamos perante a iminência da fraude do outro, como podemos defraudar a imagem que o outro tem de nós. O que mostramos ao outro no primeiro encontro é sempre uma espécie de best of the records em que passamos as melhores músicas que tocaram nas nossas vidas. É claro que não nos vamos pôr a passar os discos riscados, os que se partiram, e muito menos aqueles que comprámos para ouvir apenas o single, mas que acabámos por ter de levar com o álbum inteiro. Por essa selecção musical de eventos, somos sempre uma fraude no primeiro encontro. E isto não quer dizer que sejamos melhores ou piores do que o nosso eu habitual, simplesmente não correspondemos ao nosso eu quotidiano; somos, digamos, uma versão melhorada.
Encontraram-se ao final da tarde, junto ao Cais das Colunas, antigo porto de Lisboa onde desembarcavam as pessoas nobres. Escolheram-no por isso. Numa época paupérrima da qualidade das relações, urgia desembarcar emoções nobres. O nervosismo borbulhava em ambos como na adolescência. Tentar disfarçar o desassossego durante a espera de um desconhecido que nos atrai é tão inútil como tentar arrefecer com um sopro o leite quando este levanta fervura no púcaro.
A pessoa chegou e acenou efusivamente a uma distância considerável. Aproximaram-se em passo trôpego, na expectativa do cumprimento físico. Cumpriu-se a promessa de tronco contra tronco do abraço, atrapalhado pelo desejo. Depois, e a toque de vinho, conversaram imenso sentados numa esplanada, com o desejo crescente e não expresso por palavras. É sempre comovente ver alguém novo, um desconhecido cujo Q.I. sabemos estar bastante acima da média, desatar a dizer banalidades para disfarçar o nervosismo. Melhor ainda é pressentir que o estranho que partilha a mesa connosco gostaria de usar a boca e a língua para comunicar, mas sem recorrer ao uso de palavras. No final do dia, acabam por se beijar congratulando em silêncio a melhor versão de si mesmos.
Os enamorados principiantes são fraudulentos amorosos, que bebericam copos de vinho como se estivessem completamente à vontade na presença do outro, e compõem sem querer um quadro romântico. Correspondem à ideia do amor doutrinada pelo romantismo e cumprem o modelo que, na maioria, se pratica até à data – ser o par amoroso perfeito, que corresponde à expectativa do outro. Quando na realidade todos sabemos que ninguém é normal, que há vários níveis de loucura, mas que ninguém escapa a um certo nível de insanidade. E que as únicas pessoas que nos parecem normais são aquelas que não conhecemos bem.
Por isso sabemos que, no primeiro encontro, aquela pessoa que nos atrai mas ainda desconhecemos, e que parece tão profundamente organizada e normal, é naturalmente uma fraude. Sabemos isso por experiência. Com sorte, aquilo que não nos mostra é a sua melhor parte. Com azar, tem alguma psicopatia grave e vai causar-nos problemas. Nunca se sabe, é a roleta russa do primeiro encontro. Contudo, se a sua loucura coincidir com a nossa, será sempre a melhor hipótese depois de revelada a fraude. Por isso, a palavra fraude em relação ao primeiro encontro não tem de ser má. Digamos que se trata de recorrer à maquilhagem para encobrir a pele imperfeita mas bonita, e ao uso do perfume para acrescentar ao cheiro bom e natural do corpo.