Desigualdades sociais pós-covid-19: um teste à saúde mental dos portugueses
Num país com um crónico subinvestimento na área da saúde mental, em que cerca de 65% dos casos de doença se encontram sem tratamento e que anualmente provocam perdas de mais de 300 milhões de euros na economia, urge apostar na contratação de recursos humanos e no desenvolvimento de um verdadeiro modelo de intervenção comunitária.
Num momento em que a primeira vaga da pandemia da covid-19 parece estar mais controlada em Portugal e na maioria dos países do mundo, é chegada a hora de fazer os primeiros balanços. Assim, desde logo, sabe-se que as suas consequências para a saúde mental da população em geral, mas sobretudo de alguns grupos específicos, como os profissionais de saúde, as crianças e adolescentes, as vítimas de violência doméstica, os idosos e as pessoas com problemas de saúde mental preexistentes, foram nefastas. Porém, e pese embora a atual pandemia tenha caraterísticas particulares que dificultam qualquer previsão, sabe-se de outras situações análogas que na maior parte das pessoas os sintomas são de natureza autolimitada, acabando por desaparecer completamente com o tempo.
Apesar do impacto negativo imediato para a saúde mental decorrente da pandemia da covid-19, o cenário apresentado pode até parecer relativamente benigno. Porém, e como a própria Organização Mundial de Saúde já enfatizou, há duas consequências futuras que não podem ser negligenciadas: as consequências sociais e as consequências económicas.
No que diz respeito à situação económica, é expectável que as maiores dificuldades surjam num futuro próximo. Porém, para alguns, o presente é já um verdadeiro teste à sua resiliência. Durante a pandemia da covid-19 quase todos os cidadãos tiveram que obedecer às mesmas regras e todos tinham um objetivo comum; porém, nem todos estiveram “no mesmo barco”. Assim, enquanto alguns se mantiveram a trabalhar, presencialmente ou a partir de casa, sem qualquer perda no seu rendimento familiar, outros perderam os seus empregos ou viram os seus rendimentos reduzidos.
A experiência da crise financeira de 2007-2008 diz-nos, de forma clara, que fatores como a diminuição de rendimentos e as dificuldades financeiras para aceder a bens essenciais têm um impacto significativo na saúde mental dos cidadãos, com particular aumento das perturbações depressivas e das perturbações de ansiedade. Os números não enganam: em 2008, aquando do início da crise financeira, a prevalência de doenças mentais na população portuguesa era de 19,8% (valor já superior à média europeia); em 2015, e numa fase em que, em teoria, o pior da crise até já teria passado, esse valor aumentou para 31,2%.
Também a experiência da crise financeira de 2007-2008 nos indica que as famílias mais pobres são aquelas que tendem a ser mais afetadas, cavando-se assim o fosso das desigualdades sociais que constitui um risco muito significativo para a saúde mental. A título de exemplo, um estudo publicado pela The Lancet Psychiatry indica que o risco de suicídio de uma pessoa desempregada é 20 a 30% superior ao de uma pessoa empregada. Só no decurso da pandemia, em Portugal, o número de desempregados subiu de 315 mil no final do mês de fevereiro para 353 mil no dia 14 de abril, um aumento amortecido pelo recurso ao mecanismo do lay-off.
Num país com um crónico subinvestimento na área da saúde mental, em que cerca de 65% dos casos de doença se encontram sem tratamento e que anualmente provocam perdas de mais de 300 milhões de euros na economia, face ao expectável aumento da prevalência de doenças mentais urge apostar na contratação de recursos humanos (não só de médicos psiquiatras, mas também de psicólogos clínicos e de enfermeiros especialistas em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica) e no desenvolvimento de um verdadeiro modelo de intervenção comunitária. Urge, igualmente, apostar na promoção da literacia em saúde mental da população e, no “país dos psicofármacos”, criar condições para que nem só aqueles com maiores rendimentos possam ter acesso a intervenção psicoterapêutica.
O tempo é escasso e não é possível “emendar à mão” os erros do passado. Porém, a saúde dos portugueses vai muito para além da covid-19 e, pese embora o novo coronavírus se deva manter no topo das prioridades, importa não esquecer a saúde mental porque, como se sabe, ainda que indiretamente, a doença mental também pode conduzir à morte.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico