Biodiversidade 2020: um super-ano perdido
Importa aproveitar a oportunidade para uma recuperação económica transformadora, alterar o cálculo do desenvolvimento económico e implantar pacotes de estímulo que ofereçam incentivos para actividades mais sustentáveis e com base em soluções naturais.
Este ano deveria ser um “Super-Ano para a Biodiversidade”, com várias reuniões globais: um Congresso Mundial de Conservação, uma Conferência das Nações Unidas para o Oceano e uma Cimeira das Nações Unidas para a Biodiversidade – todos culminando para o desenvolvimento de uma nova “Estratégia para a Biodiversidade”. O ano em que a Década de Restauro Ecológico e o Compromisso Verde da União Europeia poderiam passar à acção e as propostas baseadas em soluções naturais para as negociações climáticas seriam reconhecidas. A covid-19 veio alterar os planos de acção. Mas hoje, mais do que nunca, o Homem tem consciência do que está a fazer ao planeta.
A corrente pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2 originou uma transformação global das sociedades, alterando relacionamentos familiares e devastando economias, colocando em risco a sobrevivência de muitas pessoas não só pela doença mas, especialmente, pela quebra dos meios de sobrevivência. Mas durante o período de confinamento houve, também, a oportunidade, que o recolher obrigatório permitiu, de abrir a janela e olhar para fora com outra disponibilidade. A transformação da paisagem acontecia ao ritmo normal: desabrochavam as flores, os chilreios aumentavam, os insectos zumbiam, indiferentes à preocupação e cuidados sanitários, invadindo espaços vazios, mesmo em bairros citadinos.
Se este pode ter sido um período de introspecção para apreciar a resposta rápida das espécies, por outro pode passar a noção, errada, de que nem a crise pandémica é capaz de destruir a natureza. Importa, agora, aproveitar a oportunidade para uma recuperação económica transformadora, alterar o cálculo do desenvolvimento económico e implantar pacotes de estímulo que ofereçam incentivos para actividades mais sustentáveis e com base em soluções naturais.
A população humana, actualmente com mais de 7,8 mil milhões de pessoas, representa apenas 0,01% de todas as espécies presentes no planeta. No entanto, o Homem, desde 1970, causou o desaparecimento de 60% da população global de vertebrados, mais de 40% das espécies de insectos e a perda, por ano, de três espécies de plantas com sementes. A perda de biodiversidade é um dos maiores riscos do século XXI, já que impõe custos sérios à economia e dificulta muito a abordagem de desafios globais, como as mudanças climáticas. Durante os dois últimos séculos o Homem transformou a maioria dos ecossistemas do mundo, destruindo, degradando e fragmentando habitats terrestres, marinhos e outros ambientes aquáticos e minando os serviços que eles prestam. Agora é reconhecida a interligação entre perda de diversidade e alterações climáticas e, por isso, não foi de estranhar o alerta dado no último relatório do Fórum Económico Global sobre o perigo do colapso dos ecossistemas. Pela primeira vez, o mundo económico identificou a perda de biodiversidade como principal risco nos próximos dez anos e reconheceu a sua importância para a manutenção dos serviços do ecossistema, vitais para o bem-estar humano.
Um estudo recente da Universidade de Derby, do Reino Unido, mostrou que há um aumento significativo da saúde e bem-estar das pessoas que contactam ou exercem actividades em espaços naturais. Claro que a natureza não pode ser vista ou encarada como cura milagrosa. O que estes resultados científicos demonstram é que o bem-estar, a felicidade que se sente quando se trata dum jardim, duma horta, dum espaço natural, traz benefícios para a saúde. Isto significa que o desenho e desenvolvimento dos espaços urbanos, o envolvimento dos cidadãos no espaço público e o tempo que lhes pode ser atribuído para o fazerem vai ser crucial para o futuro das denominadas “cidades verdes” e a conservação da biodiversidade, mesmo em metrópoles. Não importa pensar apenas na redução do tráfego automóvel, na plantação de faixas de árvores só para embelezar, há que envolver os cidadãos no cuidado dos “seus” espaços verdes, de bairro, estimulando o seu interesse e cuidado, como se de uma pequena horta se tratasse. O envolvimento das pessoas num espaço comunitário tem provado, em muitos outros locais, uma mais-valia para a sustentabilidade e desenvolvimento das cidades. Isso requer a contratação de técnicos especializados sobre biodiversidade e gestão de espaços verdes nas autarquias que, além de agir no terreno, podem dialogar, estimular e apoiar iniciativas cidadãs para a conservação.
Os ecossistemas estão a aproximar-se de limites e níveis críticos que, se ultrapassados, resultarão em mudanças persistentes e irreversíveis (ou muito caras para reverter) na estrutura, na função e na prestação de serviços, com consequências ambientais, económicas e sociais profundamente negativas. Gerir e mitigar com precisão esses riscos requer uma mudança fundamental no pensamento sobre o valor da natureza, incluindo a contabilização do capital natural e os custos da degradação do ecossistema no desenvolvimento económico. Não faz, por exemplo, sentido continuar a incentivar explorações agronómicas, como as estufas no litoral alentejano, em pleno Parque Natural ou na região interior com os olivais intensivos. Lado a lado, os ecossistemas naturais e biodiversos que ainda restam são desvalorizados ou cobiçados para transformações turísticas tão apetecíveis.
Será urgente a revisão da Rede Ecológica e Agrícola Nacional, a reformulação e o financiamento dos parques e reservas. Com esta revisão podiam ser promovidos e incentivados novos modelos de negócios sobre valorização e conservação do património natural, que podiam tirar partido da exploração turística, da educação para a sustentabilidade e estimular a economia. As soluções para evitar a perda de biodiversidade são complexas mas, se não forem tomadas medidas transformadoras com urgência, os riscos e impactos de tal perda serão inevitáveis.