E se os intestinos dessem pistas sobre a gravidade da covid-19?
Dois projectos portugueses vão investigar se a gravidade da manifestação da covid-19 depende dos microrganismos que habitam o intestino do doente.
Será que os doentes com quadros mais severos de covid-19, que são encaminhados para os cuidados intensivos, têm uma população de bactérias nos intestinos (microbiota) diferente da das outras pessoas? Este terá sido um dos pontos de partida para o projecto liderado por Conceição Calhau, investigadora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, e também para a investigação coordenada pela Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa, do Instituto Politécnico de Lisboa (IPL), em parceria com hospitais públicos e privados portugueses.
O estudo liderado por Conceição Calhau foi o primeiro a avançar, estando previsto que as recolhas de amostras dos participantes terminem em Julho. Depois, será altura de olhar para os resultados e, eventualmente, apresentar algumas soluções terapêuticas ou preventivas. Na próxima quinta-feira, a investigadora participa numa conferência online para discutir o tema da influência dos intestinos nesta doença e falar sobre os objectivos do seu projecto.
Sabe-se já que determinados doentes, como os que têm diabetes ou doenças cardiovasculares, têm uma maior prevalência de bactérias “más” (com potencial inflamatório) nos intestinos. Sabe-se também que as pessoas que sofrem destas doenças fazem parte dos grupos de risco identificados para a covid-19. O que a equipa coordenada pela investigadora Conceição Calhau vai tentar perceber é se esta questão é uma coincidência ou mais do que isso. “Vamos ver então se a microbiota intestinal é diferente nos doentes com um quadro mais severo da covid-19”, explica a investigadora.
O plano é identificar “as características daquilo que está mal nesta microbiota intestinal nos diferentes quadros da covid-19 (menos severos, moderados e mais graves)”, perceber quais são os desequilíbrios de bactérias e propor uma solução. Que pode ser terapêutica ou profiláctica. “Se percebermos quais são as bactérias que não têm ou têm menos e as que podem estar em supercrescimento, tentamos encontrar uma intervenção que poderá passar por um probiótico [suplementos que levam bactérias para o intestino] ou prebiótico [suplementos que fornecem alimento a bactérias no intestino], ou um consórcio de bactérias para repor o equilíbrio da microbiota intestinal”, refere Conceição Calhau.
A investigadora sublinha que o propósito do projecto “não é mostrar causalidade, mas vulnerabilidade”. E acrescenta: “Se de facto tiverem, como imagino, menos bifidobactérias ou menos do grupo dos lactobacilos, e se verificarmos que a falha destas bactérias é muito mais evidente nos doentes que acabaram por precisar de cuidados intensivos, aqui podemos estar a trabalhar num outro cenário em que já podemos preparar-nos para um segundo momento de covid.” Assim, sugere a coordenadora do estudo, poderíamos avaliar a microbiota para depois agir ou mesmo recorrer logo à partida a suplementos de probióticos para estes indivíduos que podem vir a ser identificados através deste estudo como mais susceptíveis para desenvolver quadros severos da doença.
No desenho inicial do estudo, a investigadora contava reunir uma amostra mínima com 60 participantes, o suficiente para garantir “significado estatístico”. No entanto, podem vir a ser mais do que isso. “Pela adesão de novos hospitais que quiseram entrar no estudo, estou a prever que essa amostra seja maior, o que tornará os resultados ainda mais robustos”, anuncia Conceição Calhau, que espera receber a qualquer momento alguns dos resultados preliminares sobre as amostras já recolhidas e terminar as recolhas de amostras (fecais) até final de Julho.
Além da relação entre o desequilíbrio da microbiota intestinal com processos inflamatórios, a hipótese colocada pela investigadora é reforçada também pela ligação que já é conhecida entre a população bacteriana intestinal e o nosso sistema imunitário. Cerca de 70% das células produtoras de anticorpos residem no nosso intestino. “A microbiota intestinal tem, por isso, um papel determinante na saúde e particularmente no sistema imunitário, pelo que o perfil da microbiota de pacientes infectados com o novo coronavírus poderá relacionar-se com a vulnerabilidade, desenvolvimento e severidade da doença”, explica a investigadora num comunicado sobre o estudo.
Mas há ainda outro detalhe que captou a atenção de Conceição Calhau. A “campainha” tocou quando se soube que o vírus entraria em determinado tipo de células através de uma enzima de conversão (a enzima conversora da angiotensina 2, ou ACE2, na sigla em inglês). “Sabíamos já que a microbiota intestinal influencia quer a expressão intestinal quer pulmonar dessa proteína, que, ao que parece, é a porta de entrada do vírus”, adianta ao PÚBLICO, apresentando mais uma pista para explorar.
Assim, este estudo nacional, financiado pelo laboratório farmacêutico Biocodex e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), quer demonstrar “que a microbiota intestinal pode ser um factor crítico responsável pelo resultado clínico da doença infecciosa covid-19”. Se os resultados confirmarem a hipótese, conclui a investigadora no comunicado, está aberto o caminho para “novas intervenções médicas direccionadas à microbiota intestinal contra este tipo de vírus, por exemplo com prebióticos ou probióticos associados a outras intervenções farmacológicas para a covid-19 actualmente em desenvolvimento”. Nesta quinta-feira, no site da Biocodex, realiza-se uma conferência (gratuita) que tem como título: “E se a resposta à covid-19 estiver no intestino?” Conceição Calhau e a farmacêutica Paula Iglésias vão falar sobre o papel da microbiota na resposta à covid-19.
A hipótese de que a microbioma intestinal possa estar associada à severidade dos sintomas de doentes infectados também faz parte de uma outra investigação no país. Miguel Brito, investigador em genética da Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa, do IPL, é o coordenador deste estudo, que, segundo um comunicado enviado nesta terça-feira, quer “tentar perceber se existe uma composição da microbiota “mais resistente” à infecção por SARS-CoV-2”. O plano é conseguir de alguma forma antecipar, no momento do diagnóstico, se o doente vai ter sintomas mais leves ou mais agressivos, “permitindo uma triagem mais eficiente e uma melhor gestão dos cuidados de saúde hospitalares”.
Miguel Brito acrescenta ainda no comunicado que a equipa vai procurar saber “se existe uma relação entre a vacinação, a composição microbiótica e a gravidade dos sintomas, assim como se as alterações que encontrarmos na microbiota são compatíveis com as alterações encontradas noutras infecções respiratórias virais, como a gripe comum causada pelo vírus influenza”. Com um financiamento do IPL no valor de 35 mil euros, prevê-se que o estudo, numa fase inicial, envolva 150 participantes separados em quatro grupos: grupo de controlo (não infectados); infectados com sintomas ligeiros; infectados com sintomas severos e os já recuperados da doença. Prevê-se que a investigação comece no final do mês de Maio.