Se me importo de ser “vigiado” por uma app? Façam favor
Já somos vigiados constantemente por tanta gente e de tantas maneiras diferentes que é ingénuo pensar que a utilização de uma aplicação para ajudar a monitorizar a pandemia de covid-19 pode representar um problema de privacidade. Ainda por cima, sendo o benefício maior que o prejuízo.
Esta terça-feira o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, afirmou que o estado de calamidade não prevê vigilância electrónica, um assunto que tem vindo a ser amplamente discutido nas últimas semanas por poder estar em causa a privacidade individual.
Empresas, governos e a União Europeia têm em cima da mesa a implementação de um sistema de alerta que utiliza os telemóveis para ajudar a controlar a progressão da pandemia de covid-19, seguindo o exemplo de outros países — alguns dos quais adoptaram medidas de rastreio digital para auxiliar a contenção.
Em síntese, o objectivo desta tecnologia baseia-se na instalação de uma aplicação (app) para ajudar os países (governos e autoridades de saúde) a compreender melhor as cadeias de contágio. Se uma pessoa ficar infectada e voluntariamente declarar essa informação, o sistema permitirá saber quem foram os contactos próximos nos dias ou semana anteriores e avisar os utilizadores dessa proximidade.
Este princípio tem tudo para ser visto como uma vantagem (individual e colectiva), mas também faz disparar sinais de alarme por poder vir a tornar-se, potencialmente, numa “ferramenta de controlo” dos cidadãos. É sobre isso que é importante reflectir: devemos ficar preocupados? Acho que não.
Além da salvaguarda da utilização voluntária e do anonimato dos dados recolhidos, já somos suficientemente vigiados para que uma app implementada pelo governo português, pela DGS ou até pela União Europeia represente uma ameaça suplementar (e relevante) à privacidade e liberdade individuais. Isto porque a maioria da tecnologia que usamos já o faz ostensivamente.
A Google, por exemplo, sabe mais sobre a nossa vida que nós próprios. Sabe sempre onde estamos, quais os nossos interesses e preocupações (através das pesquisas que fazemos). Além disso, antecipa o que queremos saber — pondo-nos a viver na tão falada “bolha” — e sabe primeiro que qualquer estado e entidade de saúde como evolui a época gripal.
As redes sociais sabem o que lhe dizemos e o que não dizemos — mesmo quando não publicamos um post, o Facebook regista a intenção. Elas cruzam os nossos contactos, conhecem as nossas relações íntimas e as nossas discussões profissionais. E podem saber até se estivemos perto uns dos outros. Toda esta informação é despachada para servidores norte-americanos. Controlo do estado português sobre tudo isto? Zero.
Mas o nosso Governo também tem como conhecer muito da nossa vida. Quando nos incentiva a pedir facturas, sabe quanto gastamos em compras e onde. As câmaras de vigilância controladas pelas autoridades são cada vez mais um objecto do mobiliário urbano, incluindo os transportes públicos. E ninguém anda de cara tapada para fugir disso.
Tal como ninguém deixa de entrar numa loja onde existem câmaras controladas sabe-se lá por quem, que guardam o retrato da nossa presença e o armazena sabe-se lá em que condições de segurança.
A ligeireza com que usamos a tecnologia, ignorando ou fingindo ignorar que os nossos dados — que se traduzem em comportamentos, pensamentos e movimentos — já são abundantemente usados por demasiadas organizações (onde se incluem empresas e governos e demais entidades públicas) torna incoerente que sejamos contra a implementação de uma medida de rastreio de interesse público, com vantagens indiscutíveis para o controlo e compreensão da pandemia.
Por outras palavras: se já somos vigiados de tantas formas e por tantas entidades que desconhecemos, porque é que uma app de vigilância para a covid-19 promovida pelas autoridades de saúde se torna num bicho-de-sete-cabeças? Não faz sentido.
Com isto não quero dizer que não sejam precisas cautelas, pelo contrário. O estado deve garantir que os dados utilizados são efectivamente anónimos (como pretende a Comissão Europeia) e que se mantêm protegidos, de preferência sem saírem dos nossos dispositivos.
E mais: além da segurança certificada pelo Centro Nacional de Cibersegurança, chamem-se os white hats (os hackers com princípios) para revirar o sistema e descobrir potenciais falhas antes que os black hats (os “piratas maus”) cheguem primeiro.
Especialistas defendem que uma aplicação de tracking (monitorização) para a covid-19 só será eficaz se for usada por, pelo menos, 60% da população, mas na verdade um número inferior pode não perder totalmente a eficácia. Basta que o telemóvel lance um alerta de um cruzamento com uma pessoa infectada para que o utilizador tenha a possibilidade de assumir uma atitude vigilante, para com ele próprio e para com os outros. Por princípio, não me parece haver nada de negativo nisto.
Mas eu não sou hipocondríaco nem estou a pensar num cenário mais longínquo, quando uma percentagem elevada da população estiver infectada pelo novo coronavírus. Nessa altura, talvez seja melhor desligar a aplicação para que parem os alertas. Ainda não temos como saber, vivemos em território desconhecido, a prudência aconselha a evitar palpites.
O que para já me parece certo é que os receios perante eventuais medidas de vigilância electrónica (devidamente implementados e controlados) são exagerados. Por um lado, porque já estamos excessivamente expostos e, por outro, porque a única maneira de proteger totalmente a nossa privacidade é não sair de casa e meter o telemóvel no lixo.
E, neste contexto, mais importante do que a conveniência pessoal é a possibilidade que os telemóveis oferecem de ajudar a comunidade científica a compreender as dinâmicas de transmissão do vírus e, com isso, ajudar à construção de estratégias mais afinadas capazes de evitar, como todos desejamos, novas vagas de confinamento.