Os millennials preparam-se para a segunda crise das suas vidas
Depois de começarem a procurar emprego num mercado sem oportunidades, os nascidos nos anos 80 e inícios de 90 enfrentam agora o “segundo tombo” nas suas curtas e instáveis carreiras. Algo “inédito numa geração”, diz quem os investiga. “Um grande azar”, auguram eles.
Ricardo Dias percebeu como um vírus que nunca o infectou o pode afectar “a 100%”. “Desde 14 de Março até data incerta”, conta o músico, agente e roadie, que não há concertos para dar ou ajudar a acontecer. Tal como não há turistas para receber, acrescenta noutra chamada telefónica Marisa Ferreira. “Estava de férias em Itália, no final de Janeiro, quando comecei a preparar-me mentalmente. Percebi que viria uma crise muito pior do que em 2008.”
Aos 34 anos, a recessão ainda está viva na memória da mestre em Comunicação Política que participou na organização dos protestos contra a falta de oportunidades e a precariedade de 12 de Março de 2011, tida como a maior manifestação não vinculada a partidos políticos desde a Revolução dos Cravos.
O “grito de revolta” da altura, no entanto, é agora mais um suspiro de conformismo. “A origem desta crise é completamente diferente da outra”, começa por distinguir Marisa Ferreira. E depois, o que economistas e sociólogos têm vindo a descrever como “inédito”, citados da norte-americana Atlantic ao espanhol El País, é para as pessoas nascidas nos anos 80 e 90 “só mais um grande azar”.
“Uma geração que tem uma transição para o mercado de trabalho muito precária, com percursos instáveis, dificuldade em compatibilizar emprego e família e que sofre duas crises no espaço de dez anos como as que estamos a enfrentar, em democracia, é inédito”, repete ao P3 Pedro Adão e Silva, sociólogo e docente universitário.
Numa crise que “não tem um efeito simétrico”, continua, a vulnerabilidade anda de mãos dadas com “o tipo de sector onde trabalham e o tipo de vínculo laboral que têm”. “Normalmente, estas duas dimensões estão interligadas”, lembra um dos autores do estudo Trabalho e Desigualdades no Grande Confinamento – perda de rendimento e transição para o teletrabalho. Principal conclusão: jovens são os mais ameaçados pelo desemprego e pela pobreza.
“Nós sabemos que os níveis de precariedade em Portugal são uma marca estrutural do nosso mercado de trabalho. E afectam particularmente os que entraram mais recentemente no mercado de trabalho e acumulam vulnerabilidades porque não só têm vínculos precários como uma parte significativa deles, mesmo os qualificados, trabalham em sectores particularmente expostos a uma crise como esta”, enquadra o sociólogo. “Porque mesmo que a economia comece a recuperar, há sectores onde foi criado muito emprego em Portugal na última década e esses sectores não vão recuperar ao ritmo de outros. Quem está a trabalhar em sectores ligados ao turismo, à restauração, e a um conjunto de actividades que dependem e que foram alavancadas por estes sectores, tenderá a sofrer mais os efeitos da crise.”
A “quebra total” nos rendimentos do trabalhador da área do espectáculo — que, enquanto não recebe respostas aos pedidos de apoio à quebra de actividade, vai vendendo vinis de edições limitadas e amealhando o que ainda está por receber de trabalhos anteriores à paragem provocada pelo novo coronavírus — não é significativa, para já, nos rendimentos da funcionária de uma pequena empresa de alojamento local do Porto, que entrou em lay off.
Alguns anos depois de sair à rua com os que se popularizaram como Geração à Rasca, numa altura em que trabalhava em jornalismo a recibos verdes, Marisa Ferreira trabalhou dois anos num talho. O dono, o pai, ofereceu-lhe o “primeiro contracto de trabalho”. Há cinco anos, agarrou-se à “tábua de salvação” do turismo. Faz trabalho de escritório e abre as portas aos hóspedes temporários de 15 apartamentos na baixa do Porto.
Olhando para as reservas no início do ano, esperava trabalho “como nunca”. Mas o dia 18 de Março foi o último em que algum dos apartamentos esteve ocupado. Por agora, só em Agosto é que Marisa terá turistas para receber. “Foi um tombo gigante”, resume, o segundo para muitos jovens adultos que integram a mancha heterogénea habitualmente pintada como millennials.
Enquanto Marisa Ferreira se manifestava nas ruas pouco tempo depois de entrar no mercado de trabalho, Ricardo Dias, em conjunto com 40 colegas, preparava-se para abandonar o departamento financeiro de uma empresa de engenharia em que “as obras públicas estagnadas” levaram à estagnação do pagamento de salários durante meses. Em muitos aspectos, sente-se “a voltar a esses anos”. “Passei por um despedimento colectivo, em 2012 reergui-me, 2020 volto a tombar, sem aviso. Acredito que há empresas que não vão recuperar desta e artistas que não voltam. Ao mesmo tempo, não podemos encarar esta paragem como o fim.”
“Isto é tudo novo, ninguém estava preparado para que, de um momento para o outro, o país parasse”, continua Ricardo, que tem aproveitado para passar mais tempo com o filho. A incerteza impede que muitos planos, profissionais e pessoais, avancem. “Os quotidianos instáveis e incertos são uma experiência muito marcante. E estamos aqui todos a perspectivar quotidianos muito indeterminados. Pura e simplesmente não sabemos como as coisas vão evoluir e o que vai acontecer”, comenta Pedro Adão e Silva. Se com o grande confinamento e a pandemia de covid-19 “os jovens adultos provavelmente vão ver intensificadas aquilo que já eram as marcas do seu quotidiano”, a precariedade “tenderá a marcar o quotidiano de mais portugueses”. É isso que os “choques” fazem, lembra o sociólogo: “reforçam tendências que já existiam”, tornando “mais presentes aspectos e características que afectavam apenas alguns grupos”.
“Hoje em dia tenho mais experiência profissional. Arrisquei e procurei trabalhar noutras coisas. Tenho muito medo do que aí vem, não vou dizer o contrário. Mas compreendo”, diz Marisa Ferreira, que antecipa uma possível viragem temporária para acomodar turistas nacionais ou alojamento de longa duração. “Nós já estamos habituados, sempre tivemos de lutar. É mais uma luta.” No seu caso, e reconhecendo um certo humor negro, com mais uma arma em relação às anteriores: “tenho direito ao fundo do desemprego”.