A covid-19 e o jornalismo guiado por dados
Os jornais The Washington Post e Financial Times, além de serem publicações de referência em seus respectivos países, têm uma coisa em comum: a peça mais acessada de todos os tempos nos dois é uma visualização de dados sobre a pandemia de covid-19.
Encontrar histórias nos dados, ou contar histórias com dados, não é algo novo no jornalismo. Em 1868, o Ministério do Reino designou uma comissão para estudar as causas da falta de trabalho em Portugal. Uma das propostas apresentadas foi a construção de casas populares.
O jornal Diário Popular considerou os valores apresentados pela comissão irrealistas e questionou a viabilidade do projeto, publicando uma tabela com os custos associados à construção das habitações — terrenos, materiais e mão-de-obra. “Aqui está, pois, a utopia desfeita”, lê-se no fim da matéria. Em 1888, O Repórter reclamava da falta de transparência dos dados governamentais. Nada mais atual.
A grande transformação que ocorreu no início deste século foi a possibilidade de não apenas contar histórias com dados, mas permitir que o leitor interaja e explore as informações apresentadas. A peça “Como está a evoluir a pandemia de covid-19 onde vivo?”, publicada pelo PÚBLICO a 26 de abril, é um ótimo exemplo. Com o recurso de escolher um determinado concelho, o leitor pode personalizar o conteúdo da página, tendo acesso a detalhes sobre o crescimento do número de casos do novo coronavírus no concelho em que mora ou em que trabalha, por exemplo.
Essa customização confere ao leitor um protagonismo que era impossível há algumas décadas. Essa interatividade transforma a peça jornalística no que os investigadores Sylvain Parasie e Eric Dagiral chamam de “uma conveniente ‘ferramenta de tomada de decisão’ ou ‘ferramenta de pesquisa’ em sua vida diária, através do acesso simples e padronizado aos dados”. Outro exemplo de conteúdo de serviço com visualização de dados no PÚBLICO é “Em que lugar ficou a sua escola?”, que traz o ranking das escolas do ensino básico e secundário no país.
Todos os anos, o “Ranking das Escolas” está entre o conteúdo mais visitado do site do PÚBLICO. Mas as visualizações de dados fazem mais do que gerar um pico de tráfego de forma pontual (como normalmente acontece com as notícias mais lidas). Estudos mostram que os leitores passam mais tempo nesses conteúdos e seguem visitando-os meses — às vezes anos — após a publicação. Além disso, a importância do jornalismo para a democracia é reforçada, uma vez que o processo de apuração dessas peças muitas vezes consiste em cobrar transparência e prestação de contas de órgãos públicos, exigindo a divulgação de dados abertos do Governo.
Boas visualizações de dados contam histórias complexas de forma simples e clara, sem nunca descurar do cumprimento rigoroso da apuração. São projetos mais demorados para produzir e que exigem profissionais com diferentes aptidões: investigação, estatística, programação, design. Infelizmente, praticamente nenhuma redação portuguesa tem uma equipe dedicada ao jornalismo guiado por dados (data-driven journalism). A falta de capital e a crise crônica que assola o setor é apenas parte da razão. A ausência de disciplinas sobre o tema nas licenciaturas das universidades portuguesas é outro fator determinante.
Durante esta pandemia de covid-19, tem havido um boom de visualização de dados, muitas sofríveis, aquém do recomendável. Outras transmitem a informação de forma tão cristalina e eficiente que viram referências, sendo replicados ao redor do mundo. O fato é que é inegável a importância da visualização de dados para explicar conceitos como “achatar a curva” e o “número básico de reprodução” (R0). Esse conteúdo também tem comunicado de maneira eficaz as incertezas que cercam o Sars-cov-2 e as limitações dos dados divulgados pelas autoridades públicas.
De acordo com Simon Rogers, editor de dados na Google, os vazamentos do WikiLeaks, há uma década, foram um momento decisivo para o jornalismo guiado por dados (principalmente nos Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha) porque forçaram os jornalistas a avançar em um campo que se encontrava em desenvolvimento lento. Faço votos para que a cobertura sobre a covid-19 seja um divisor de águas no jornalismo guiado por dados em Portugal.