União Europeia enfrenta “momento da verdade” para travar crise de confiança

Depois de semanas de tensão e descoordenação, os chefes de Estado e governo precisam de mostrar unidade, determinação e solidariedade. Retomam as negociações com “melhor ambiente” mas ainda profundamente divididos sobre as melhores soluções para responder à crise.

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Reuters/REINHARD KRAUSE

Na última década, por muitas (demasiadas) vezes os chefes de Estado e Governo da União Europeia estiveram muito perto do abismo mas acabaram por dar um passo atrás. Talvez por isso acreditem que no decurso da reunião informal do Conselho Europeu por videoconferência, esta quinta-feira, serão novamente capazes de evitar o cenário de queda no precipício tantas vezes anunciado, e alcançar um acordo de princípio para uma resposta económica robusta à crise sem precedentes provocada pela pandemia do novo coronavírus.

“É o momento da verdade”, avisou o presidente de França, Emmanuel Macron, elevando o dramatismo e as expectativas quando aos resultados do encontro, o quarto em sete semanas.

Um falhanço dos líderes europeus em mostrar “unidade”, “determinação” e “solidariedade” põe em causa o funcionamento do mercado interno e a viabilidade da união monetária e compromete seriamente a confiança dos europeus no projecto de integração política iniciado há 60 anos, concordam os analistas e comentadores. Mais do que uma solução credível para mitigar os prejuízos económicos e sociais da pandemia, o que está em causa é evitar que ela deixe sequelas sob a forma do eurocepticismo, populismo e nacionalismo, observam.

Os sinais negativos de discórdia, descoordenação e inflexibilidade deixados pelos dirigentes europeus no início da crise deram lugar a uma postura mais construtiva. O tom mudou e as indicações são agora de que os principais responsáveis estão conscientes da gravidade da situação e da urgência de uma resposta comum.

“A atmosfera é boa, no sentido em que ficou definitivamente para trás a percepção de que alguns países iriam ganhar bastante e outros perder muito com esta crise”, garantia um responsável europeu na véspera da reunião.

O presidente do Conselho Europeu quererá explorar esta base de entendimento para forçar um “acordo” entre os líderes, mesmo que este esteja ainda longe de uma solução fechada e definitiva. Charles Michel avançou os princípios gerais para o compromisso: solidariedade, flexibilidade, inclusividade, respeito pelos direitos e os valores.

As discussões preparatórias, e a variedade de propostas para o financiamento do plano de recuperação da economia (que “têm várias coisas positivas e outras que são muito controversas”), evidenciaram “dois elementos que são aceites por todos os países”, revela a mesma fonte.

“Um é o conceito do level playing field e a necessidade de garantir que a recuperação é simétrica e proporcional. O outro é de que, dada a dimensão da crise, teremos de criar um instrumento especial, isto é, um fundo próprio e autónomo para apoiar a retoma da economia”, enumerou.

Na sua tradicional carta aos líderes antes das cimeiras, Charles Michel pede um acordo para “o estabelecimento de um fundo de recuperação tão depressa quanto possível”, e sugere que a Comissão seja mandatada para “avaliar as necessidades e desenhar uma proposta compatível com o desafio”.

Não é pedir muito: fontes diplomáticas de Bruxelas acreditam que os chefes de Estado e governo vão dizer que sim ao presidente do Conselho e manter as negociações (sobre o montante global, o financiamento e a fórmula de distribuição) em aberto.

Há, portanto, razões para algum optimismo, o que não quer dizer que não continuem a existir divergências profundas, linhas vermelhas inultrapassáveis e condicionamentos políticos que dificultam um acordo. Fonte europeia envolvida na preparação da videoconferência reconhecia que determinados “conceitos”, como da dívida perpétua, nunca vão obter unanimidade, e que há “palavras que não passam”: mutualização é uma delas, e a dificuldade não está na tradução. 

O problema é que as diferenças entre os países do Norte e do Sul nunca foram tão acentuadas, e não têm só a ver com os mecanismos e instrumentos financeiros mais adequados para responder à crise, mas com a visão sobre as obrigações e os benefícios de pertencer ao bloco comum e o nível do compromisso, ou da disponibilidade, para aprofundar a União.

No debate em curso, há muitas arestas técnicas por limar, mas acima de tudo “há uma questão de confiança” que é preciso resolver, admitia um membro da equipa de Michel.

Holanda-Itália

As forças populistas e da extrema-direita estão à espreita em países como a Holanda e a Alemanha, e ainda a Itália ou a Espanha, para mencionar apenas aqueles que protagonizaram o último braço de ferro no Conselho Europeu. A crise do coronavírus ofereceu aos opositores da União Europeia uma oportunidade de bandeja para acicatar as massas contra a indecisão, ineficiência e inutilidade de Bruxelas: o desafio dos governos será contradizer esta narrativa e demonstrar que há um “valor acrescentado” na União e que a solidariedade é do interesse de todos.

Vários líderes continuam a falar mais para dentro do que entre si. Nem o líder dos Países Baixos, Mark Rutte, nem o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, têm condições políticas para fazer grandes concessões. Um e outro estão fortemente pressionados pelas forças de extrema-direita nos respectivos países. Rutte teme uma redução drástica da votação nos partidos do centro nas legislativas do próximo ano. Conte sabe que o seu governo não resistirá a uma nova ofensiva de Matteo Salvini, o líder da Liga que é contra o euro e tudo o mais que venha de Bruxelas.

Sem a retaguarda dos seus parceiros europeus, que os deixaram isolados, Rutte e Conte agarram-se às posições duras que, por esta altura, são as mais populares junto das respectivas opiniões públicas. O primeiro insiste que está respaldado pelo programa da coligação no governo e o apoio do Parlamento para travar qualquer proposta que envolva partilha de risco ou transferências entre Estados-membros. O segundo prometeu, mais uma vez, não assinar nenhuma declaração conjunta que não incluísse “uma panóplia de instrumentos adequados ao desafio que a UE enfrenta”. 

Talvez por isso ficou decidido que não haverá lugar à aprovação de conclusões: no fim da reunião, Charles Michel divulgará uma declaração na qualidade de presidente do Conselho, dando conta das decisões dos líderes.

“O que se espera, e esse será um resultado positivo, é que seja possível delinear os termos de um possível compromisso, para que a Comissão possa avançar com o seu trabalho e montar um plano”, disse uma fonte europeia. “A ideia não é que os líderes definam já todos os detalhes, mas sim que apontem uma direcção. O mais importante será o mandato que vão dar à Comissão, que depois terá que estabelecer a ligação entre o plano de recuperação económica e o próximo quadro financeiro plurianual. Há várias combinações possíveis”, observou.

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, apresentará aos líderes algumas ideias preliminares sobre o formato do fundo de recuperação, bem como as mudanças previstas para o quadro plurianual 2021/27— que como tem repetido a líder do executivo, servirá de base para o relançamento da actividade económica europeia. 

“O orçamento comunitário será a principal força motriz da recuperação económica. Por isso, vai ter de ser muito diferente do que tínhamos imaginado”, disse Von der Leyen, acrescentando que serão precisas “soluções inovadoras” e “maior margem de manobra para mobilizar um volume maciço de investimento público e privado”.

Segundo diplomatas de Bruxelas, as propostas em cima da mesa com maiores chances são aquelas que prevêem soluções mistas para o financiamento e instrumentos de natureza híbrida. “A solução mais criativa, que passa pela combinação do QFP [quadro financeiro plurianual] com o novo fundo para a recuperação, será também a mais apelativa”, notou fonte europeia.

Essa é a abordagem que tem o beneplácito de Berlim. No início da semana, Angela Merkel lembrou que o debate não se faz só em torno das posições extremas dos que proclamam que na UE nunca poderá haver partilha do risco e dos que gritam contra mais endividamento.

A chanceler alemã apontou exemplos de instrumentos temporários desenhados com base no artigo 122 (parágrafo 2) do Tratado de Funcionamento da UE para responder à crise do coronavírus, caso do programa SURE para a protecção de postos de trabalho. “Não vejo razão para que outros instrumentos que passem pela emissão pela Comissão de obrigações apoiadas em garantias financeiras dos Estados membros não possam aparecer no futuro”, disse.

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