Spirit Animal: eles documentam o impacto das alterações climáticas nas tribos da Mongólia
O documentário Spirit Animal tem estreia prevista para 2021. Até 21 de Abril, esta co-produção portuguesa está a organizar uma campanha de crowdfunding, que dá aos contribuidores a oportunidade de viajar até à Mongólia com a equipa.
Spirit Animal é um documentário que retrata o último grande êxodo na Mongólia — um dos muitos provocados pelas alterações climáticas. Tânia Neves é fotógrafa e produtora e está a trabalhar em conjunto com Inês von Bonhorst e o italiano Yuri Pirondi. Venceram uma Bolsa de Exploração Nomad, mas decidiram organizar um crowdfunding para poderem começar a divulgação e angariar novas parcerias. A campanha aberta no Indiegogo está montada com vários níveis de contribuição: as pessoas podem contribuir com o montante para um simples almoço, um postal, um poster autografado do filme, um photobook, um agradecimento nos créditos da longa-metragem ou uma ajuda para as famílias da Mongólia envolvidas.
O filme acompanha três famílias distintas de tribos diferentes: os caçadores com águias da região Oeste das montanhas do Altai, os Dukha — conhecidos criadores de renas que vivem no Norte da Mongólia, na região do Taiga — e um ex-criador de cavalos da região de Bulgan, “o animal que continua a ser o grande símbolo mongol”. Este último é o narrador principal da história; Tânia conta ao P3 que “esta é uma pessoa que perdeu todos os animais que tinha com as alterações climáticas. Altansukh teve de deixar de ser nómada, abandonou as estepes e mudou-se para os subúrbios de Ulan Bator, a capital, na esperança de ter uma vida melhor, conseguir arranjar trabalho e ter algum dinheiro. Mas agora vive sem condições”.
Qualquer pessoa que decida investir pode ser produtor associado ou produtor executivo. O segundo nível mais alto corresponde a uma expedição à Mongólia, a decorrer entre Setembro e Outubro de 2021. Mesmo depois de a campanha fechar, a inscrição na viagem vai continuar disponível (estando limitada a 10 pessoas). A produtora diz que conseguiu construir uma expedição de 15 dias em que os participantes não têm que se preocupar com nada: “Está tudo tratado”. “É uma oportunidade para conhecerem a Mongólia, verem como funciona o set de um filme com a equipa em modo full-production e, até, conhecerem as próprias pessoas retratadas.”
As alterações climáticas nas estepes
Já que neste momento “está presa em Portugal” e não pode viajar pelo mundo, Tânia viaja pelo tempo para explicar como tudo isto começou. É licenciada em fotografia e depois de vários anos a trabalhar na área do entretenimento decidiu abandonar tudo e partir à descoberta: “Fui dar uma volta e nunca mais voltei. Ando a dar uma volta há quatro anos.” Sendo também líder de viagens, desenvolveu “uma paixão muito grande pela Ásia Central, sobretudo sítios remotos que vivam num isolamento social por opção há muitos séculos”. Com os anos, foi vendo “a situação da Mongólia a decair” aos poucos. “Comecei a aperceber-me que, se calhar, ‘o fim’ está próximo e que nós estávamos numa situação privilegiada, [a partir da qual podemos] ver as coisas como elas eram tradicionalmente, bem como a transição para como elas se estão a tornar. Daqui para a frente, não sei como é que vai ser.”
Na posição de “storytellers (realizadores, produtores e fotógrafos)”, sentem que é o seu dever registar a memória de um povo e, paralelamente, alertar para o que está a acontecer. “Temos a oportunidade de criar algo único, porque existem documentários e já toda a gente ouviu falar dos caçadores com águias da Mongólia, mas numa versão muito idílica ou utópica.” Tânia sente que agora falta contar o outro lado da história, “o que está a acontecer e o que pode acontecer se nós não pusermos um travão nisto”.
“Os mongóis vivem numa cultura muito centrada nos animais. Criam-nos e quando chega o Inverno sabem quais são aqueles com menor probabilidade de sobreviver ao frio. Então antecipam essa morte e utilizam o animal todo: os ossos para instrumentos musicais, a pele para roupa e para cobrir as ger, a carne para comer — fumam a carne e depois dá para o inverno todo”, relata. A Mongólia tem um desastre natural só seu: o dzud. Um dzud é um Inverno extremamente rigoroso em que um grande número de animais morre.
A líder de viagens esclarece que o grande problema é que as alterações climáticas estão a fazer com que os dzud sejam cada vez mais frequentes: “O frio interfere com a estrutura das plantas e elas crescem sem os minerais e vitaminas que teriam em condições normais.” Assim, os animais comem as plantas, mas como estas já não têm qualquer valor nutritivo, acabam por não ficar saudáveis o suficiente para enfrentar o Inverno e morrem. Também pode acontecer a camada de gelo ser tão espessa que os animais nem conseguem chegar à sua única fonte de alimento. “Quando temos uma família que tem 300 cabeças de gado e estima que 10 não sobrevivam, e depois passa o Inverno e perdem quase todas… eles ficam sem qualquer sustento para se manter. O impacto das alterações climáticas é brutal.”
Daí nasce a grande migração que Tânia refere: a deslocação em massa das estepes para os subúrbios das cidades (“Há alturas em que atravessamos as estepes numa carrinha e passamos dias sem ver ninguém”). As famílias movem as ger (habitações típicas) para as cidades, mas no Inverno têm de queimar carvão para fazer frente ao frio (na estepe, as tribos usam estrume ou as poucas árvores que existem). “Então, são milhões de pessoas a queimar carvão e isto faz com que Ulan Bator seja uma das cidades mais poluídas do mundo. Estão a cerca de 1500 metros de altitude — a poluição atmosférica gerada fica ali presa.”
“Os dois lados da mesma moeda”
Tânia é apenas uma das peças do puzzle. Inês von Bonhorst e Yuri Pirondi são a dupla que constitui a MAKKINA, um projecto sediado em Itália cujo trabalho pode assumir a forma de filme de autor, anúncio televisivo, conteúdo para marcas, instalação de vídeo ou documentário. Trabalham com marcas como a Vogue, Nike, Ducati e Valentino. Tânia e Inês conhecem-se desde o ensino secundário e colaboram regularmente desde essa altura. Ainda da equipa residente fazem parte Marion Rivaux e Ubaldo Giusti, que são assistentes de produção e vivem em Inglaterra. São “uma grande mescla de nações”, brinca Tânia. Por fim ainda têm os parceiros na Mongólia, que ajudam com a logística e questões locais.
A primeira parte do documentário foi filmada no final de 2018. Fizeram uma prospecção pela zona e filmaram uma das famílias — a dos caçadores com águias —, que surge no trailer exibido para promoção do projecto. “Com essas filmagens fizemos o piloto e uns testes, percorremos alguns festivais internacionais (um em Itália, outro na Índia e um aqui nos Açores) e tivemos muito boa recepção.” A partir dessa altura, desenvolveram um guião mais completo, para retratar “a situação da Mongólia toda e não só desta tribo em particular”. Decidiram procurar fundos e parcerias, sendo essa a fase em que estão agora. A Nomad é o parceiro principal, tendo atribuído ao projecto a Bolsa de Exploração Nomad e garantido a organização da estreia mundial do filme em Lisboa. “À parte disso, temos dois contratos com distribuidores internacionais para a difusão lá fora.” Tencionam regressar à Mongólia em Setembro para continuar as filmagens e ter o Spirit Animal concluído no segundo semestre de 2021.
A produtora admite que, apesar de tudo, “a bolsa é muito pequena”. “Estamos a falar de uma longa-metragem filmada na Mongólia, um dos destinos mais caros a nível de voos.” Uma das vantagens do Indiegogo é que se trata de uma plataforma na qual “muitas pessoas da indústria do cinema internacional” procuram onde investir. “Acaba por ser o melhor de dois mundos: produtores com ideias, mas sem dinheiro para fazer os filmes, e investidores com dinheiro à procura de projectos interessantes”, reflecte. No entanto, o panorama de pandemia actual faz com que estejam a ser “atropelados pelos projectos que têm covid-19 no nome”, como é compreensível. Três dos produtores associados ao filme vieram do Indiegogo, ainda assim. E quem contribuir para o crowdfunding fica com o nome associado ao filme, na secção abaixo dos créditos “para o agradecimento especial”.
O documentário Spirit Animal está planeado para uma duração de 90 minutos e vai “ter os dois lados da mesma moeda”. A produtora garante que as “paisagens incríveis” vão poder ser admiradas de qualquer forma, mas “a Ulan Bator intensamente poluída e as pessoas a viverem em condições miseráveis” serão parte da essência do filme. “É uma história que tem aquela dualidade e acaba por criar um conflito interior em quem a vê.”