Barulho das obras, a banda sonora indesejada para quem está em teletrabalho

O sector da construção civil não parou, e entre pequenas e grandes obras multiplicam-se os pontos de conflito com um número anormal de teletrabalhadores que não têm como fugir ao ruído.

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rui gaudencio

Há quem tenha normalizado, ou simplesmente se tenha refugiado nas profundezas de uns auscultadores. Há quem não o consiga normalizar de todo. Com mais gente confinada em casa, e a tentar trabalhar à distância, a vizinhança com outros trabalhos, os da construção civil, tornou-se num desafio difícil de resolver. Como dar aulas, ou ter reuniões com equipas por videoconferência, com o ruído das máquinas a partir pedra ali ao lado? Estas são questões para o tempo da pandemia, mas que um eventual incremento do teletrabalho vai colocar na nossa agenda colectiva, avisa o líder da associação ambientalista Zero, Francisco Ferreira.

Em Portugal, apesar de haver legislação sobre o ruído, dele pouco se fala, e muitas vezes o barulho não é olhado como aquilo que é, um poluente, com impacto na nossa saúde e qualidade de vida, como o lixo, os esgotos ou o fumo dos carros. Este, por exemplo, desapareceu temporariamente das nossas cidades, que são notícia agora pelo ar límpido que não tinham há décadas, e com ele desapareceram também muitos ruídos que constituíam uma espécie de fundo sonoro da nossa urbanidade. Agora ouvimos de novo os pássaros mas...calma lá, para além do melro cantor, entra pela janela um esgar de um disco de uma rebarbadora perante o atrito da pedra, numa rouquidão contínua que nos faz agradecer aos céus quando pára. 

Pois é. Os trabalhos de construção civil não pararam. O sector bem tentou explicar as dificuldades que teria para cumprir as regras de isolamento físico numa obra qualquer, mas se há empresas que se adaptaram, fizeram planos de contingência e até deixaram de laborar, muitas outras não o puderam ou quiseram fazer. A impressão de quem vive em Lisboa e no Porto é a de que, com tanto alojamento local vazio, muito proprietário aproveitou para fazer aquelas obras que se iam adiando. E num mercado com um nível elevado de informalidade, não falta quem as faça, legal ou até mesmo ilegalmente. 

Quando os auscultadores não salvam

Mas voltemos ao ruído. Obras sempre houve. E gente a fazer de casa o escritório, também. Mas encolhido o espaço social, e fechadas as instalações de muitas empresas, de repente o número dos que estão confinados nas suas casas e apartamentos, em trabalho, multiplicou-se, multiplicando também as hipóteses de vizinhança com as empreitadas que, salvo uma ou outra fase, implicam sempre algum ou muito barulho. 

A situação até é resolúvel quando as tarefas implicam, por exemplo, escrever uma notícia já depois de feitas as entrevistas. Liga-se os auscultadores ao computador, procura-se por alguma coisa que não soe a música industrial - para isso já chega o que vem lá de fora -, e voilà, pomos a máscara, para usar uma expressão que se nos tornou cara por estes dias, mas que para Mariana Alves-Pereira, investigadora na área do ruído de baixas frequências, significa essa capacidade que uns sons têm de disfarçar a presença de outros: pelo menos à escala da nossa percepção mais imediata. Porque, na verdade, o que estamos é a sobrepor ruído ao ruído. 

Já lá iremos, às baixas frequências, uma espécie de dark side deste universo tão mal tratado do ruído. A Cristina Machado, nem o facto de viver numa casa, numa zona residencial, de baixa densidade, no concelho de Matosinhos, a salva. Confinou-se no lar no a 16 de Março e, nesse mesmo dia, começaram as obras para erguer uma moradia no lote ao lado do seu. E pronto, os planos desta investigadora na área da transformação digital da economia de fazer do escritório doméstico o ponto de acesso a alunos de mestrado e doutoramento, ou ponte para reuniões com equipas em vários pontos do país e no estrangeiro, tiveram todos de ser repensados. 

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“Não posso ter aulas com o microfone desligado. Por isso, começo sempre por avisar sobre esta situação”, explica. A circunstância não podia ser mais incómoda, mas sempre que o proprietário da obra lhe liga (porque até se conhecem), e pede desculpas, ela mostra compreensão. Afinal, no seu caso, como no da maioria das pessoas com quem o PÚBLICO falou, os trabalhos decorrem nos períodos previstos na lei. Que, assinala Francisco Ferreira, docente universitário também na área da poluição sonora, foi pensada como se estivéssemos em casa do fim da tarde ao início da manhã. Nunca no resto do dia.

Trabalhar ao ritmo das obras

Desconectada deste extremo a que chegamos, o Regulamento Geral do Ruído trata-nos como se fossemos intrusos no nosso próprio espaço pessoal. Não devíamos estar em casa no horário de expediente. Desconhecendo quanto tempo temos de recolhimento, o líder da Zero admite que não seria mal pensado uma redução dos períodos em que se pode fazer barulho, o que implicaria alguma reorganização de quem anda nas obras. Até porque, entre aqueles que se conseguem adaptar - empurrando algumas tarefas que exigem silêncio para a noite, por exemplo - aquele arranque da manhã, ao som da rebarbadora, torna-se ainda mais perturbador. Esses primeiros sons matinais são, como lhes chama Cristina, as três pancadinhas de Moliére. Levanta-se o pano, que o dia vai começar. 

João Costa já não trabalha ao seu ritmo, mas ao das obras. Precisa de gravar conversas, para fazer podcasts, por exemplo, e ter esta banda-sonora em fundo, ali onde vive, no centro de Lisboa, não dá jeito nenhum. A casa não é um estúdio - e, longe disso, o cuidado com o isolamento acústico de muitas habitações em Portugal deixa, como se sabe, muito a desejar. São dois a partilhar o apartamento e, nos dias que correm, a dificuldade de ambos é semelhante. “Sabemos que o teletrabalho vai aumentar. Mas isso vai levantar muitas questões quanto ao ruído ambiente, mas também quanto à salubridade, à segurança e à ergonomia. Trabalhar no sofá parece giro, mas passada uma semana as costas ficam todas partidas”, vai reflectindo nesta conversa com o PÚBLICO.

A dificuldade repete-se a cada entrevistado. Cláudia, que vive em Campo de Ourique, Lisboa e pede para não ser identificada, tem o ruído a chegar-lhe de cima, num apartamento que se esvaziou e entrou em obras. Professora universitária, não está a ver como será este regresso às aulas. Patrícia Campos, no Porto, nem com os auscultadores sossega, porque a casa treme-lhe com as obras no prédio ao lado. Caiu-lhe estuque do tecto, e a paciência, essa, também já se espatifou pelo chão. Ali, na baixa do Porto em que o turismo fez um intervalo, mas a construção civil nem por isso, até pelo sábado dentro se trabalha ruidosamente, queixa-se. 

Muitas queixas, no Porto

“Temos recebido um número elevado de denúncias sobre a realização de obras, sobretudo em apartamentos. O facto de, no momento que vivemos, a esmagadora maioria das pessoas estar confinada na sua habitação tem ‘facilitado’ o processo de denúncia, sobretudo pelo incómodo sonoro que tais obras muitas vezes acarretam. No fundo, as pessoas estão há muito tempo em casa, impacientes e mais atentas à violação do seu bem-estar, e qualquer ruído mais intenso é denunciado à polícia”, admite a assessoria de imprensa da Câmara do Porto. Cidade onde têm sido detectadas, e embargadas, explica, algumas obras ilegais, iniciadas precisamente nesta fase por quem acreditaria, eventualmente, que também a fiscalização ficou confinada em casa.

Programador informático a viver em Lisboa, na rua D. Estefânia, a Daniel Silva nem a música alta lhe salvava a concentração quando o martelo pneumático de uma obra lhe invadia o horário de trabalho, há duas semanas. Aparentemente, a empreitada terminou, ou foi simplesmente interrompida, e o ambiente está mais sossegado. Com um apartamento virado para as traseiras da rua, nestes tempos de confinamento há um outro som que deixou de ouvir, o das unidades exteriores do sistema de ar condicionado de um ginásio próximo que fechou por causa da covid-19. 

Esta percepção, pela ausência, de um ruído que está sempre presente, a ponto de muitas vezes nem repararmos nele, é o outro lado desta situação em que vivemos. Quer Francisco Ferreira, quer Mariana Alves-Pereira assinalaram, ao PÚBLICO, que a eliminação, no ambiente urbano, de um conjunto de sons que interiorizamos como normais, nas nossas vidas (o dos carros a passar na rua em frente é um deles), deixa-nos mais disponíveis para o que sobra. Que pode ser o canto melodioso dos pássaros, mas também pode ser o barulho de uma obra, que se destaca ainda mais, nestes tempos. 

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E as baixas frequências?

Especialista em baixas frequências e infra-sons, Mariana Alves-Pereira não cessa de chamar a atenção para esta outra poluição que a lei não identifica nem regula, que provêm de aparelhos como os de ar condicionado, frigoríficos e outros electrodomésticos, mas também, no exterior, de sistemas mais complexos, como as estações de tratamento de águas residuais ou parques eólicos, onde as pás das turbinas golpeiam o ar, lançando ondas sonoras a grandes distâncias, explica. A exposição a este tipo de sons, que tomamos como naturalmente presentes nas nossas vidas, têm efeitos na nossa saúde e, desde logo, estão associados a problemas de hipersensibilidade ao ruído, vinca esta investigadora. 

Na sequência das alterações drásticas ao nosso quotidiano, muito se tem reflectido, e escrito, sobre as mudanças mais permanentes que poderiam ser aplicadas às nossas vidas, no pós-covid. A nossa relação com o ambiente sonoro mudou, também temporariamente, faltando saber, quando tudo regressar à normalidade, se o silêncio (um conceito relativo) vai continuar a ser um luxo de quem ousou sair da cidade, ou se mesmo nela vamos reivindicar um quotidiano menos poluído. Até lá, é rezar para que o vizinho não desate a partir paredes.

 
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