Os sofismos na libertação de presos e a oportunidade para se pensar na justiça restaurativa

A necessidade de libertação de presos é uma resposta digna, uma manifestação solidária e um dever humanitário de um Estado que deve ser responsável por proteger todos os seus cidadãos em matérias de Saúde Pública.

Os perdões de penas, indultos especiais ou a antecipação de liberdade condicional são temas que originaram algum alarme social no debate público. Esta é uma matéria que deve ignorar debates alimentados por ideologias. É uma questão humanitária. Sabendo, desde logo, que a libertação de presos exclui uma extensa lista de crimes violentos, além de que o perdão de penas se destina a “pessoas idosas, em grave situação de saúde”, conforme se pode ler no comunicado da Presidência da República, é importante atentar na humanidade desta acção e é necessário combater o aproveitamento político que este tópico tem suscitado.

Nesse debate, importa sublinhar que o sistema prisional português se organiza numa lógica de celas dispostas em camaratas, facto que constitui um rastilho pronto a explodir caso não sejam tomadas as devidas medidas de contenção. E essas ações passam pela absoluta necessidade de se libertar espaço nos estabelecimentos prisionais com o intuito de originar uma maior capacidade de resposta na necessidade de se isolar presos, para responder a uma doença altamente contagiosa, sobretudo em espaços partilhados e confinados.

A necessidade de libertação de presos é, assim, uma resposta digna, uma manifestação solidária e um dever humanitário de um Estado, que deve ser responsável por proteger todos os seus cidadãos em matérias de Saúde Pública. A inação da sociedade perante a possibilidade de deflagração de focos de contágio dentro de estabelecimentos prisionais constituiria um crime moral, um risco demasiado elevado que não pode ser concebido de ânimo leve, nem rejeitado em favor do florescimento de populismos e de campanhas políticas de promoção de ódio. Neste debate, devem ser combatidos os agentes políticos que se alimentam de discursos extremistas para fomentar o medo, suportados em alguma comunicação social, e que desenham um país que não é real, ficcionando uma realidade pós-apocalíptica de insegurança e de criminalidade. Essa ficção é conveniente para o seu discurso político, mas está sustentada em sofismos, que favorecem uma agenda própria, em favor de campanhas eleitorais, descurando todo e qualquer interesse pelo bem-estar da sociedade e não se interessam pela prevenção de novos focos de contágio.

Nos últimos tempos, vários artigos de opinião têm alertado para a possível evolução das mentalidades coletivas resultante da crise atual. Nesse contexto, e apesar de vivermos actualmente no quarto país mais seguro do mundo, talvez seja importante introduzir um novo tópico na lógica de debate público, nomeadamente através de campanhas de discussão e de sensibilização coletivas em torno do modelo de aplicação de justiça em Portugal, nomeadamente através da procura de formas de redução de índices de criminalidade e da discussão de medidas de reforma dos estabelecimentos prisionais portugueses, que podem inclusive reduzir os seus custos anuais. Em alguns países, já vem sendo ensaiada a introdução de modelos de justiça restaurativa, que podem reduzir de forma significativa as taxas de reincidência criminal, oferecendo novas possibilidades de reinserção social. Para sustentar esta ideia, é importante oferecer ao leitor duas visões formuladas há muitas dezenas de anos, para contextualizar alguns dos pilares de pensamento desse modelo e para demonstrar que as raízes da justiça restaurativa não são desconhecidas do debate científico.

Em 1762, num contexto de proliferação de conceitos focados na individualidade, Jean-Jacques Rousseau formulava o clássico “Contrato Social”. Como é bem sabido, essa obra conceptualiza o homem como naturalmente bom, sendo a sua introdução na sociedade o factor responsável pela sua decadência, pela sua corrupção, em síntese, pela sua degeneração comportamental. Movendo-se em estruturas de pensamento verosimilhantes, mais recentemente, o sociólogo norte-americano Edwin Sutherland (1883-1950), desenvolveu uma teoria conhecida como “associação diferencial”. Essa doutrina explica que o comportamento criminal é sobretudo um produto do contato social com meios flagiciosos, tratando-se de um processo de aprendizagem adquirido através da convivência com a prática de delitos. Em suma, essa teoria explica que existe uma maior predisposição psicológica para comportamentos criminais se existir um contacto próximo com pessoas que cometam crimes, factores que podem ajudar a explicar a questão da reincidência criminal. De facto, dados recentes, publicados pela Prison Fellowship International, apontam precisamente neste sentido, indicando que uma em cada cinco crianças repete os comportamentos criminais que se habituou a observar durante a infância.

Face ao exposto, e tendo em vista a influência do meio na reinserção e reeducação sociais, será que um modelo de justiça punitiva ou retributiva, como atualmente está concebido o nosso sistema, será o mais adequado para combater a reincidência criminal? Ou, até mesmo, será esta uma resposta adequada face à criminalidade gerada a partir de núcleos populacionais desfavoráveis e marginalizados? Quais são as alternativas existentes?

A respeito da reincidência criminal, os dados disponibilizados pelo Ministério da Justiça não são detalhados e constituem um problema de partida para a conceptualização do problema. Em 2003, foi divulgado que 51% dos condenados reincidiam depois de saídos das prisões. Em 2017, o relatório de atividades da Direção-Geral de Reinserção e dos Serviços Prisionais informa que 2079 reclusos já haviam cumprido uma sentença anterior, sobretudo a respeito de crimes relacionados com tráfico de droga, condução sem carta e delitos de furto e roubo. A nível mundial e europeu, taxas de reincidência criminal disparam para cifras a rondar os 75%. Em Portugal, esses números terão correspondência? É fácil perguntar, mas os dados disponibilizados são lacónicos a esse respeito, não nos permitindo alcançar detalhadas conclusões.

Ainda assim, é neste contexto de problematização em torno da reincidência criminal que têm surgido ensaios focados em novos modelos de aplicação de justiça. A tradicional perspectiva focada na justiça retributiva (ou punitiva) concebe a atribuição da pena e da culpa, como um método para combater a consequência do delito. É essencialmente uma visão punitiva, de relação estatal entre sociedade e agressor, e cuja concepção desse modelo oferece imediatamente problemas no que respeita à reinserção e reabilitação sociais dos indivíduos, mesmo quando existem reconhecidos esforços de reeducação e de programas conduzidos nos estabelecimentos prisionais portugueses. Reconhecendo essa realidade, é legítimo questionar se o problema de reinserção social não pode residir na raiz do modelo de justiça vigente; isto é, essa incapacidade generalizada na reintrodução e reinserção sociais não poderá ser uma demonstração de um problema estrutural do modelo de justiça punitiva? A hostilidade do foco na culpa e punição poderá marginalizar ainda mais os envolvidos e provocar a repetição dos mesmos actos?

Considerando os problemas assinalados, na década de 1970, Albert Eglash problematizou a doutrina de justiça restaurativa, pensando no crime como um delito cometido contra a pessoa e as relações interpessoais, sendo, na sua essência, uma disrupção comunitária. Desse modo, caberia à justiça a missão de restaurar essas violações, quer através da reparação dos danos cometidos à vítima, quer da reparação das ofensas cometidas à sociedade, relações interpessoais e do próprio agressor. Pela sua própria definição, este modelo oferece uma visão que privilegia a reabilitação do agressor, porque conceptualiza um modelo de justiça associado a uma componente educacional, de aprendizagem social, visando a reinserção na comunidade, com o objetivo de afastar definitivamente o agressor do meio criminal.

Em Portugal, a APAV tem desenvolvido um importante papel na divulgação deste conceito de justiça restaurativa e oferece-nos mais informações sobre os pilares essenciais desta corrente de pensamento. Assim, de acordo com aquela fonte, em primeiro lugar, o modelo de justiça restaurativa destaca o elemento social, percebendo que o crime constitui uma perturbação das relações humanas. É, em síntese, um comportamento disfuncional nas relações sociais, deixando de ser uma simples interpretação de violação da lei. A redefinição do conceito de crime oferece uma nova perspectiva na concepção criminal, passando a considerar o ato do crime como uma relação entre agressor e vítima, no contexto de vivência em comunidade, em vez de observar essa acção como um acto contra o Estado. Dessa forma, o crime é uma manifestação de um comportamento anti-social, sendo a reinserção social do prevaricador facilitada pela integração de uma perspectiva de violação comunitária, em vez de estatal.

Em segundo lugar, esta corrente de pensamento integra elementos participativos ou democráticos, sendo talvez o tópico mais sensível (e aquele que pode garantir melhores resultados a longo prazo) em toda esta abordagem. Quer isso dizer, só é possível considerar a existência de um processo de justiça restaurativa caso exista um envolvimento activo das vítimas, infractores e de toda a comunidade.

Por fim, em terceiro lugar, surgindo na sequência do ponto anterior, é necessário aplicar um elemento reparador, consistindo essencialmente pelos processos restaurativos e orientados para a reabilitação da vítima, pretendendo-se que o agressor repare o dano causado. O facto de a vítima se envolver activamente nesse processo permite que se formulem necessidades concretas para a sua reparação, o que pode garantir melhores resultados.

Em síntese, a justiça restaurativa procura reparar os danos causados pelo crime, enfatizando a responsabilidade, o perdão e a concepção de reparação social, assente em lógicas de dinâmicas de sociedade, agregando os esforços de todos, na procura de uma reeducação social. Nos testes desenvolvidos até agora, de acordo com os dados disponibilizados pela Prison Fellowship International, esta abordagem demonstra a existência de reduções de custos com a justiça criminal, para além de se registarem taxas mais baixas de reincidência criminal e, sobretudo, verifica-se a redução de situações de stress pós-traumático das vítimas. Enfim, os resultados positivos da redução criminal em Portugal, aquando da descriminalização da posse de droga e a mudança de paradigma face ao consumidor, demonstram que existem lições de um passado recente que devem servir de motivação para se orquestrar um novo tubo de ensaio no nosso sistema de justiça.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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