Apelo para a acção durante e após a covid-19
No passado recente, Portugal mostrou a sua resiliência e deu o exemplo ao resto da Europa na forma como é capaz de gerir uma crise. Não me surpreenderia se a história se repetisse.
Tenho refletido muito desde o início desta crise mundial, que já foi ignorada por demasiado tempo. Talvez a melhor maneira de começar este artigo, seja por definir o cenário, e colocando algumas questões, que aparentemente têm respostas muito simples.
O mundo descobre que, ao longo dos anos, as economias nacionais tornaram-se demasiado dependentes de outros países. Iremos notar uma mudança na relação de dependência no futuro? Uma inversão na deslocalização da produção?
As empresas receberam uma “chamada de atenção”, e trabalhar com um mínimo de stocks pôs em evidência uma vulnerabilidade até agora desconhecida. Teremos uma mudança na gestão de stocks?
Pela primeira vez desde que muitas leis constitucionais foram criadas, a liberdade dos civis e os direitos fundamentais estão fortemente restringidos. As democracias não podem funcionar da forma como foram concebidas. Haverá uma mudança na governação?
Na luta por uma Europa forte, as fronteiras foram abolidas. Muitos países lutam hoje na reconstrução das mesmas fronteiras. A Europa mudará e tornar-se-á mais restrita ou deverá receber mais poder?
Muitos países têm uma forte regulamentação no que respeita à posse de armas. Mas, e se esta crise piorar em lugares onde estas limitações não existem? Os EUA terão depois uma política mais restrita? A Califórnia e Nova Iorque são os mais afetados, uma vez que estão mais virados para o mundo, mas também para a maioria dos democratas.
Quando uma crise aponta diretamente para a necessidade de posse (seja de um seguro, de uma casa, ou de tantos outros bens), ou para a falta dela, muitas sociedades estarão a um passo de uma crise social. Serão os nossos esforços de inclusão social revistos após esta crise?
Os sistemas educativos, viram-se obrigados a funcionar online. Até que ponto educação e inclusão estão a ser consideradas, para assegurar que todos têm igualdade de oportunidades nesta realidade hoje?
Quando, há vinte anos, ocorreu uma crise no mundo, foram os EUA que intervieram e resolveram o problema com dinheiro e bens materiais. Será que com o coronavírus, este será o ponto de viragem para a China substituir os EUA que agora têm de mostrar ao mundo que não conseguem lidar com o vírus? E que não conseguem prestar a ajuda necessária que a China oferece livremente?
Este vírus realça muitos dos pontos fracos da nossa sociedade e pode, em alguns casos, conduzir a várias mudanças fundamentais.
Comecemos com o aspeto que muitos europeus consideram ser parte fundamental do nosso ADN – a capacidade de cuidar. Este é um momento em que todos temos de ficar em casa, mas é esperado que continuemos a trabalhar, ao mesmo tempo que os que têm filhos precisam de continuar a apoiar os que têm aulas online.
Para uma parte da sociedade, isto não será um problema, se tivermos em conta o número de computadores disponíveis e o apoio adicional na gestão das tarefas domésticas. Mas e as pessoas que têm de trabalhar, apoiar os seus filhos nas aulas, e lidar com a gestão de uma casa durante um isolamento social? E os pais que não têm condições financeiras para adquirir os equipamentos necessários para os filhos poderem acompanhar as aulas on-line ou habilitações para ajudarem os seus filhos com os exercícios escolares? Como vamos lidar com a lacuna educacional que esta crise está a evidenciar?
Seguimos para a dependência económica. Não há nada que possamos fazer hoje para resolver este problema. Tornámo-nos dependentes ao ponto de um vírus colocar grande parte do mundo numa recessão económica, que poderá durar muitos anos. A Europa tornou-se totalmente dependente da China, como principal produtora de material médico, essencial para este momento. Em Portugal, alguns heróis locais já surgiram, e mudaram a sua produção do dia para a noite de forma a produzir máscaras ou gel à base de álcool. São necessários mais e muitas empresas podem contribuir de uma forma, ou de outra, com alguma criatividade.
Pessoas que facilitem a construção de hospitais improvisados sem burocracias e de forma ágil, pessoas que mudem os seus modelos de negócio e que fabriquem gel com álcool, batas, máscaras e ventiladores, tudo isto de forma rápida e eficiente. Precisamos de pessoas que utilizem o linho armazenado e produzam máscaras. Porque todos podem ser pequenos heróis.
A gestão e a deslocalização de stocks vão ser pontos de atenção fundamentais para os governos e empresas. Este vírus transformou o nosso sistema capitalista, num curto espaço de tempo, num “imperador sem roupa”. Demorou apenas três semanas a destruir o que precisou de 10 anos para reconstruir desde a última crise. Não podemos aceitar estas fraquezas no futuro. Não podemos aceitar que milhões de pessoas percam os seus empregos enquanto nos dias de pré-corona não tivemos um problema económico. É necessária uma reflexão profunda sobre a nossa governação social e que afetará o funcionamento de muitas economias.
O isolamento social que vivemos veio acabar com a nossa liberdade. De repente, passamos a estar restringidos às divisões da nossa casa e a um ecrã. Os tempos de maior stress, instabilidade, incerteza e isolamento irão certamente afetar os nossos relacionamentos e, por outro lado, pode acontecer que as taxas de natalidade também aumentem. Mas como devemos nós, enquanto sociedade, defender os mais vulneráveis? Aqueles que agora, mais do que nunca, estão expostos, dia e noite, a um aumento dos abusos conjugais? Aqueles que permanecem indefesos e a precisar de apoio? Ou aqueles que, sem um abrigo, precisam também eles de se isolar?
É nestes momentos de escassez e perturbação da “normalidade” que, por norma, testemunhamos o aumento da violência social. Como lidar e apoiar os menos afortunados que são os primeiros a sofrer de uma tendência económica de desaceleração e a viver com poucas condições de segurança e higiene, durante meses? Estão em curso ações específicas para eles?
Enquanto as discussões sobre o trabalho flexível duravam há anos nas empresas, grande parte destas conseguiu que todos os colaboradores trabalhem em casa. Uma decisão automática, assente na prioridade máxima da segurança das pessoas. Mas qual será o impacto desta nova realidade quando regressarmos à normalidade? O que acontecerá com os preços imobiliários dos escritórios quando a crise acabar? É claro que vamos valorizar ainda mais estar com os nossos colegas, e até duplicar os abraços, mas as empresas vão estar perante uma nova realidade e precisarão de menos espaço de escritório do que antes. Trabalhar a partir de casa, com as devidas condições, funciona muito bem. Mas no futuro, e fruto do contexto atual, poderemos ter 20%, 30% ou, até mesmo, 50% dos colaboradores a pedir para trabalhar a partir de casa.
O vírus provou aos mais céticos que a tecnologia afinal não é uma ameaça para a sociedade, e ao invés disso, facilitou e permitiu que neste momento nos organizássemos com segurança.
No entanto, esta situação abre outra fraqueza. Os hackers podem tomar um país refém ao atacar o sistema de saúde no atual estado de urgência. Qual é o plano alternativo quando a internet falhar? Qual é o plano de apoio para os fluxos básicos de bens e serviços? Como evitar a agitação social e estarmos presentes para os necessitados naqueles momentos. Estamos prontos?
A situação económica em Portugal era boa. Face à média europeia, o crescimento do PIB foi superior e a taxa de desemprego inferior. Cabe exclusivamente ao Governo, ao sistema financeiro e à indústria, assegurar que todos recuperem o seu emprego quando a epidemia passar. A ortodoxia orçamental deve ser deixada de lado para garantir uma rápida recuperação.
Este vírus é muito pior do que todos esperávamos. O impacto na economia portuguesa será muito pior do que se espera, assim como o impacto social. Esta situação vai pedir medidas inesperadas e heróis governamentais inesperados, que estejam à altura de lidar com situações inesperadas. Serão pedidas medidas e sacrifícios urgentes e corajosos.
Vamos sair desta crise? Claro que sim, mas esta não é a pergunta mais importante. O principal foco terá de ser encurtar o impacto económico, com as medidas de acompanhamento mais excecionais que o país terá tomado em toda a sua história. Não podemos manter a nossa economia fechada durante muitos meses. O planeamento é necessário.
Gostaria que esta mensagem fosse vista como um apelo à ação, para que os pequenos heróis se levantem e se destaquem, e para que os grandes heróis se deixem conhecer.
No passado recente, Portugal mostrou a sua resiliência e deu o exemplo ao resto da Europa na forma como é capaz de gerir uma crise. Não me surpreenderia se a história se repetisse, e que todos os portugueses, juntos, agregassem toda a força na resolução desta crise, com base no seu forte sentido de pertença e atitude fundamental de se ajudarem uns aos outros. É, e continuará a ser, um grande país.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico