Há vida e morte além da covid-19
O combate às doenças cardiovasculares, às doenças oncológicas, às doenças respiratórias e a muitas outras que nos fazem guerra diariamente pode ser suspenso por duas semanas, mas dificilmente por mais tempo. O custo será muito alto e será em vidas.
O resultado positivo da resposta de confinamento social implementado de forma percursora em Wuhan, o exemplo do dramático combate travado na Lombardia e algumas previsões epidemiológicas deixaram muitos governos sem outra solução que não fosse suspender a atividade de grande parte da sociedade, em nome do distanciamento social.
Este travão a fundo afectou toda a atividade programada na Saúde. Consultas, exames complementares, intervenções e cirurgias foram desmarcadas a correr, com aval de todos e muita compreensão dos doentes, pouco desejosos de recorrem ao hospital e ao Centro de Saúde por estes dias. A atividade urgente foi mantida, a eletiva foi proscrita e estigmatizada.
Combater o coronavírus é agora uma “guerra,” com os profissionais de saúde a passarem para a linha da frente, obrigados a exporem-se a riscos, a tomarem decisões difíceis, e a trabalhar em condições por vezes subótimas (eufemismo usado em medicina para “mau”). Eu, como médico, tenho de perguntar: onde pensam que estávamos antes? O que acham que fazíamos antes?
Os coronavírus vão e vêm, com picos e vales em curvas epidemiológicas com que a população se familiarizou. Mas as principais causas de morte em Portugal são endémicas, isto é, estão cá sempre. O combate às doenças cardiovasculares, às doenças oncológicas, às doenças respiratórias e a muitas outras que nos fazem guerra diariamente pode ser suspenso por duas semanas, mas dificilmente por mais tempo. O custo será muito alto e será em vidas. São muitos os estudos que mostram que todas as epidemias infeciosas são acompanhadas por um pico de mortalidade das doenças não infecciosas. Há que cuidar em achatar esta curva também.
É necessário que os planos de contingência para a covid-19 não sejam disruptivos para o tratamento das outras doenças mortais. Há que retomar a atividade médica de forma organizada e com prioridade para os doentes mais graves. É essencial começar a programar a fase pós-covid-19, com listas de espera que não serão geríveis se as condições forem as mesmas que tínhamos antes da pandemia.
Um médico italiano afirmava por estes dias que “agora somos os heróis, amanhã seremos as bestas”. Quem nos bate palmas agora, amanhã apontará o dedo (ou levantará a mão) pelo atraso na consulta ou na cirurgia. Pois será melhor então guardarem as palmas para depois. Guardem-nas para o governo que der condições para os enfermeiros terem uma remuneração digna... Batam palmas quando as carreiras médicas forem revistas... um forte aplauso a quem propuser um investimento forte na valorização dos profissionais de saúde. Nessa altura, quando importar, façam uma ovação de pé.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico