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Autonomia em tempos de pandemia

Que a classe média brasileira não fique apenas assistindo pelas telas essa disputa terrível entre os que querem antecipar um amanhã restrito à uma gangue de privilegiados e os que adiantam-se para descolonizar o futuro e dele retirar a “Casa Grande e a Senzala”.

A covid-19 surgiu numa época de crescente pressão mundial para que a gestão da saúde seja um investimento e uma responsabilidade individuais, com preço e valor de mercado. O número crescente dos aplicativos de saúde, com lembretes diários sobre a performance física e mental de cada usuário, é apenas um entre os vários exemplos da banalização do autodiagnóstico e da autoavaliação permanentes.

Contudo, a gestão autônoma de si abre falência durante a pandemia. A começar por um dos locais mais sensíveis da batalha contra os seus estragos: o hospital. Microcosmo dos limites da condição humana, o hospital maximiza e escancara o que, fora dali, não se quer ver. Lugar do teste final, do desmonte das vaidades dos pacientes, especialmente na UTI [Unidade de Tratamento Intensivo], quando eles estão sem suas roupas, distantes de suas casas, apartados de suas rotinas, de seus entes queridos e de suas profissões, reduzidos à condição de organismos, “elementos inertes”. Os trabalhadores dos hospitais presenciam essa espécie de desumanização, dia e noite. Enfermeiros, médicos e faxineiros devem cumprir rigorosos protocolos, mas, com a covid-19, multiplicam-se os níveis de ansiedade e estresse, tanto na lida com pacientes altamente contagiosos, quanto diante da ameaça de precisar decidir quem vive e quem morre. Era o caso de perguntar: quando o número de casos graves é muito maior do que a quantidade de leitos hospitalares, e quando não há equipamentos suficientes de proteção individual, como ficam as avaliações de excelência e as famigeradas “habilidades para lidar com situações desafiantes”? Quanto aos pacientes, como suportar a doença que os deixa totalmente dependente dos outros se, nos últimos anos, há um insistente elogio à responsabilidade individual pela própria saúde e pela própria felicidade? De que vale a autonomia promovida pelo ideal empresarial contemporâneo – presente no trabalho e nas relações familiares – quando se está com febre e falta de ar, ou quando há entes queridos nesse estado e o serviço de saúde colapsa?

Entretanto, o que se passa dentro do hospital é apenas um concentrado do que ocorre fora dele. Com a covid-19, a sociedade é convocada a viver segundo os riscos e as precauções hospitalares. Aprende-se que ninguém sabia lavar as mãos de verdade e que a assepsia permanente do corpo e dos objetos deve, doravante, ser rotineira. Em alguns países, o uso de máscaras e luvas cirúrgicas generalizou-se. A pandemia instituiu uma contabilidade e uma vigilância dos gestos semelhantes àquelas dos soldados e cirurgiões: imposição de um alerta permanente, como na guerra, exceto quando se está sozinho, na própria casa que, nessas condições, se distancia de um lar e assemelha-se à uma caserna. A covid-19 engoliu diferentes inquietações para impor as suas: quantos dias de incubação, quantos meses faltam para baixar a curva dos casos, quantas semanas de confinamento, quantas horas o vírus permanece fora do corpo, quantos mortos.

A pandemia também escancarou o quanto a autonomia, que parecia fácil e vencedora, pregada pelos empreendedores da autoajuda, não se sustenta sem o trabalho coletivo para manter o abastecimento dos hospitais e das cidades. A concorrência e o “cada um por si” não aguentam sozinhos o tranco [choque] da covid-19, cujos efeitos pedem ciência e também empatia, sentimento impossível de ser contabilizado numa planilha [folha de cálculo] de custos e gastos. O ideal de pessoas e cidades “que não podem parar” empalidece diante, por exemplo, dos coveiros que trabalham na maior megalópole brasileira e ameaçam fazer greve porque não dispõem de álcool-gel. As performances “com sucesso” voltadas à ascensão social fracassam quando a pandemia faz vítimas em hospitais privados, resultando em mortes sem direito a velório.

No Brasil, a covid-19 escancarou o quanto a estupidez e a negligência, existentes há séculos, vão custar caro. Muitos ainda teimam em não pagar essa conta. O regime escravocrata atualiza-se entre os brasileiros a cada vez que empregadas domésticas – há mais de seis milhões no país – não têm direito à dispensa remunerada de seus serviços. A exclusão social também fala alto quando moradores de rua reclamam: “Pediram isolamento. Vamos nos isolar onde?”

Em sociedades nas quais a quarentena é privilégio de uma minoria, a maioria não tem meios para evitar o contágio. Os entregadores de alimentos, com suas bicicletas e motos, têm dificuldade para encontrar um banheiro e lavar as mãos. O que é óbvio saltou aos olhos: milhares de pessoas não podem escapar à aglomeração dos transportes públicos, nem vivem em moradias bem construídas, abastecidas e seguras.

Além disso, a pandemia escancarou o fato de o Brasil ter um presidente que governa apenas para a sua facção. Bolsonaro começou por dizer que a covid-19 era uma fantasia, uma histeria coletiva; a seguir, uma gripezinha, uma “chuva” que molha, mas não mata. Bolsonaro acabou por revelar que não se importa em deixar morrer uma parte da população agora, contanto que o seu clã sobreviva melhor no futuro. Ele exprime o pensamento daqueles que desejam colonizar o futuro com senhores e escravos. Trata-se de uma lógica da antecipação do atraso.

Felizmente há milhares de brasileiros que labutam para antecipar o que há de efetivamente moderno no país: a inventividade e as iniciativas comunitárias, tais como os comitês de Crise, os coletivos e associações de moradores que fazem o mapeamento das regiões de maior risco, além de mutirões [redes e organizações online] para evitar a fome e o contágio. Eles sabem que a mudança que se pode fazer não é para depois que a pandemia passar. A hora é agora.

Que a classe média brasileira não fique apenas assistindo pelas telas essa disputa terrível entre os que querem antecipar um amanhã restrito à uma gangue de privilegiados e os que adiantam-se para descolonizar o futuro e dele retirar a “Casa Grande e a Senzala”.

Sabemos que esta pandemia não foi a primeira e certamente não será a última. Esperemos que não seja necessário uma covid-21 para que se aprenda a viver consigo mesmo, para melhor estar com os outros. Lavar as mãos para eliminar micróbios e não para livrar-se de mais da metade da população de um país. Que se criem condições, enfim, para que ao menos os mais jovens aprendam que amar não é perder tempo e que cuidar dos outros não serve para tirar nem dar pontos à ninguém.

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