Instituto Gulbenkian de Ciência também sequencia genoma do SARS-CoV-2
A ideia do instituto, que obteve agora os seus primeiros três genomas do vírus, é sequenciar 1500 a 2000 amostras recolhidas em doentes em Portugal.
A pandemia do novo coronavírus quase parou por completo o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), à semelhança do que se passa no resto do país e do mundo. Quase – porque uma das unidades do instituto de Oeiras, a de genómica, mantém-se em funcionamento. Como tal, o instituto acaba de obter a sequenciação genética do coronavírus SARS-CoV-2, responsável pela desordem mundial que vivemos com a pandemia da covid-19. Para já, foi ali sequenciado o genoma de vírus de três doentes e o número de amostras a sequenciar é “idealmente”, segundo a investigadora Mónica Bettencourt Dias, directora do IGC, na ordem dos 1500 a 2000 genomas nos próximos três meses. Com os genomas já sequenciados, entretanto, pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, que quer também chegar a 1500 genomas virais neste prazo, há agora mais de 100 sequenciações de vírus de doentes portugueses.
As três amostras vieram do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (antes conhecido como Hospital Amadora-Sintra). Em apenas seis horas, a tecnologia utilizada nos laboratórios do IGC permitiu sequenciar o genoma do SARS-CoV-2. Tal como o resto da comunidade científica mundial está a fazer, o destino dessa informação é a base de dados bioinformática Nextstrain, de acesso aberto.
A informação sobre o genoma do SARS-CoV-2 é importante para saber se há alguma especificidade sobre o vírus presente no país, sublinha Mónica Bettencourt Dias, lembrando o caso do vírus da sida, que tem um segundo tipo (o VIH-2) que veio a ser descoberto em doentes em Portugal. “Queremos olhar para o que se passa em Portugal, de onde vêm os vírus, como passam de um lado para o outro”, explica a investigadora, pelo que a sequenciação genética permite evidenciar este tipo de dados. “É importante sabermos o que se passa aqui e contribuirmos para este esforço. Esta informação é importante para o conjunto”, acrescenta.
“A questão é como evolui o vírus com o tempo, para perceber se a vacina vai funcionar e se quem teve a doença esta imunizado. Se ele evoluir imenso, esse alvo muda muito e a vacina não funciona.” Se o vírus for um alvo em movimento, os anticorpos protectores produzidos pelo nosso sistema imunitário – desencadeados tanto pela vacina como pela infecção natural – vão acabar por não servir ao fim de algum tempo. Perdemos a imunidade.
O IGC vai continuar a sequenciar o genoma do vírus, para chegar às tais cerca de 1500 a 2000 amostras de genomas. Se o vírus apresentar grande diversidade, o ideal é ter bastantes amostras para obter um quadro mais completo. Se, por outro lado, for muito homogéneo, já não serão necessárias tantas. “Temos o know-how da tecnologia Nanopore, mais célere que a tecnologia de sequenciação Illumina, tipicamente usada, e que nos dá flexibilidade para estudar o genoma do vírus SARS-CoV-2”, diz em comunicado de imprensa Ricardo Leite, coordenador da unidade de genómica do IGC, explicando igualmente que a sequenciação genética permite traçar as possíveis cadeias de transmissão do vírus. “Permite-nos fazer o tracking da cadeia de propagação do vírus.”
O tempo necessário para atingir aqueles números de genomas depende do ritmo a que chegarem as amostras aos laboratórios do IGC vindas dos hospitais. Além do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, o IGC está a estabelecer parcerias com vários hospitais da zona de Lisboa – Egas Moniz, São Francisco Xavier e Santa Cruz – para aplicar testes de diagnóstico. “É uma parceria para fazer o diagnóstico do pessoal que está na linha da frente na área da saúde, que é o mais contagiado por este vírus. Oferecemo-nos para fazer este diagnóstico e temos dez mil testes disponíveis”, explica Mónica Bettencourt Dias, dizendo que estes kits seguem o protocolo dos Centros para a Prevenção e Controlo das Doenças dos Estados Unidos (CDC). “A ideia é sequenciarmos o vírus das amostras positivas quando estivermos a fazer os testes de diagnóstico.”
A estes quatro hospitais de onde os investigadores do IGC vão receber amostras quer para o diagnóstico quer para a sequenciação genética do vírus, junta-se ainda a colaboração com os hospitais da Cuf. Neste caso, a colaboração não passará pelos testes de diagnóstico, mas antes pelo acompanhamento de pacientes para estudar tanto o genoma do vírus como a susceptibilidade diferente dos doentes. “Vai ser crítico termos acesso a um maior número de amostras, nomeadamente do Centro e Norte do país, para estudos mais poderosos”, sublinha a investigadora.
Vinte e seis mutações por ano
Se um dos aspectos importantes nesta infecção é a investigação do vírus, o outro é precisamente o das pessoas que infecta – nós próprios, o hospedeiro. “Quando olhamos para as pessoas infectadas, há pessoas sem sintomas, com sintomas moderados, com sintomas fortes e outras que morrem. Por que é que as pessoas têm susceptibilidades diferentes? Por que é que diferentes pessoas reagem de maneira diferente?” Os sintomas mais graves são, aliás, muito parecidos com os sintomas da sépsis, refere Mónica Bettencourt Dias, explicando que há a libertação de uma grande quantidade de citoquinas, moléculas que fazem a sinalização no sistema imunitário do nosso corpo, o que pode resultar na falência dos órgãos e na morte.
Cerca de 100 pessoas do IGC estão agora envolvidas na operação do coronavírus, entre investigação científica, diagnóstico e ainda voluntários que também integram as equipas de laboratórios de análises dos hospitais por turnos, sem paragem, para ajudar a acelerar os diagnósticos.
Até agora, mais de quatro mil genomas do vírus já foram sequenciados pelo mundo fora, disponíveis em bases de dados de acesso aberto. Com essa informação, os cientistas podem fazer comparações entre as várias amostras. Por exemplo, a taxa estimada a que o vírus adquire mutações é actualmente de cerca 26 mutações por ano, nota o comunicado do IGC. “Até à data, não há nenhuma indicação de que os genomas dos vírus em Portugal sigam um padrão diferente do observado no resto do mundo”, explica Isabel Gordo, investigadora do IGC, também citada no comunicado. “Aliás, a acumulação de mutações no tempo é a esperada numa situação em que um novo vírus se espalha numa população de hospedeiros susceptíveis.”