Covid-19: moradores de favelas organizam-se para sobreviver na maior metrópole do Brasil
“Temos medo de sermos fechados aqui. De que todas as nossas entradas sejam fechadas pelo Exército, por alguém que não nos deixe sair. É disso que temos medo. Sabemos que no fundo as favelas estão muito excluídas”, disse a líder comunitária de Heliópolis, a maior favela de São Paulo.
As duas maiores favelas da maior cidade do Brasil, São Paulo, estão a organizar-se para combater a covid-19, num momento em que Presidente e governos estaduais não concordam sobre as medidas a adoptar. As ruas de Heliópolis e Paraisópolis continuam com milhares de pessoas a circular num país em que o Estado é pouco presente e são os líderes comunitários que tentam compensar as limitações, um cenário que torna evidente os dois “Brasil” que coexistem.
Em Paraisópolis, localizada ao lado do bairro Morumbi, um dos mais ricos da cidade, estima-se que vivam mais de 100 mil pessoas. Nas ruas centrais da comunidade, moradores circulavam normalmente e a maioria das lojas estavam abertas embora as autoridades do estado e do município tenham decretado emergência e pedido a permanência da população dentro de suas casas para travar a curva de contaminação da covid-19.
Gilson Rodrigues, líder comunitário da favela de Paraisópolis e fundador do núcleo G10 das Favelas, considera que a população ainda não acredita verdadeiramente nos perigos da epidemia.
“Paraisópolis vive neste momento uma tentativa de se organizar para combater o novo coronavírus, mas, no geral, a população ainda percebe a situação com descrédito”, disse. “É como se [o vírus] fosse uma coisa da televisão, que não vai chegar aqui, uma coisa dos ricos, por isto as ruas continuam lotadas e as pessoas ainda não tem consciência do que está por vir”.
A crise e o desemprego entre a população local já eram uma realidade muito presente, mas a situação piorou agora com a paralisação das actividades produtivas na mega-cidade.
“A crise e o desemprego já eram grandes e agora piorou. Aqui é como se este vírus só existisse na televisão principalmente porque há uma questão de infraestrutura que é diferente do que está sendo mostrado”, salientou Gilson Rodrigues.
“Percebemos que há dois ‘Brasis’, um que consegue fazer ‘home office’ e consegue ter álcool gel e outro onde falta até água, que está morando em cima de um córrego, que vai passar fome e sofrer mais”, avaliou Gilson Rodrigues.
Diante deste panorama, o líder comunitário e um grupo de voluntários decidiram organizar uma série de acções que incluem recolha de doações e a distribuição de alimentos em cestas e de mais de 1300 refeições por dia para os moradores mais pobres da comunidade.
Os voluntários foram divididos em grupos, com delegados de rua, para levar as informações sobre a saúde e as necessidades dos seus vizinhos. “As iniciativas que estão acontecendo aqui em Paraisópolis resultam da própria mobilização da sociedade e da comunidade (...) Até agora não há nenhuma iniciativa pública, do Governo”, lamentou Gilson Rodrigues.
Em Heliópolis, que é considerada a maior favela de São Paulo e onde vivem cerca de 200 mil pessoas, Antónia Cleide Alves, líder comunitária e presidente da União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas) contou que a situação é a mesma.
Sem apoio direito do poder público são os moradores que estão a promover acções para recolher doações, distribuir comida, produtos de higiene e informar a população.
Nesta comunidade, a movimentação das pessoas parece menor, mas muitos permanecem nas ruas e com comércios abertos para tentar sobreviver.
“Os nossos projectos com o Governo e com a prefeitura foram fechados e muitas das crianças que atendemos vinham comer aqui na Unas, muitas pessoas estão desempregadas e decidimos contactar os nossos parceiros para pedir ajuda”, contou à Lusa Antónia Cleide Alves.
A dirigente associativa explicou que a associação de moradores decidiu permanecer aberta para ajudar a servir a população.
“Hoje estamos contando muito com a solidariedade das pessoas. Temos doações, as pessoas entram em contacto. A sociedade civil está muito preocupada, do Governo percebemos que há muitas falas e pouca acção. Concretamente do Governo o que a gente percebe é uma dificuldade muito grande para fazer o atendimento”, frisou.
Antónia Cleide Alves explicou que os moradores foram avisados sobre o isolamento social e a necessidade de reforço da higiene pessoal, mas estes cuidados esbarram na falta de água, em moradias precárias e minúsculas onde as famílias vivem amontoadas umas às outras.
A líder comunitária também contou que sua maior preocupação é de que a pandemia se espalhe e acabe gerando guetos e o encerramento das entradas da favela.
“Temos medo de sermos fechados aqui. De que todas as nossas entradas sejam fechadas pelo Exército, por alguém que não nos deixe sair. É disso que temos medo. Sabemos que no fundo as favelas estão muito excluídas”, explicou a presidente da Unas.
O Brasil tem hoje meio milhar de mortos e perto de 12 mil infectados.