Ventiladores made in Portugal em contra-relógio no combate à covid-19
Dois projectos de ventiladores pulmonares portugueses reuniram investigadores, médicos, empresas e mecenas. Ambos contam ter no fim do mês os primeiros ventiladores disponíveis – num total de 300 – e o destino é o Serviço Nacional de Saúde. Um destes projectos angariou um milhão de euros de mecenas.
Ainda à espera do que nos vai reservar a pandemia de covid-19 em Portugal – haverá ventiladores para todos os doentes em falência respiratória aguda? –, pelo menos duas equipas portuguesas adiantaram-se na empreitada do desenvolvimento de ventiladores pulmonares. Muito distintos um do outro, mas complementares, esses dois ventiladores made in Portugal partilham o fundamental: salvar vidas e estarem disponíveis já no fim de Abril, a tempo de ajudarem a evitar uma ruptura de ventiladores no país, caso o número de doentes graves de covid-19 ultrapasse a capacidade actual de ventilação pulmonar nos serviços de saúde. Sem tradição tecnológica de ventiladores, Portugal vê-se com protótipos desenvolvidos numa corrida contra-relógio em resposta à emergência global de saúde causada pela pandemia.
Portugal tem hoje cerca de 1140 ventiladores. Especificando, segundo palavras do secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, numa das conferências de imprensa diárias sobre a evolução da pandemia, o país tem actualmente uma “capacidade de ventilação de cerca de 1142 ventiladores, cerca de 525 em unidades de cuidados intensivos, 480 em blocos operatórios e com uma capacidade de expansão de cerca de 134”. Na quinta-feira, António Lacerda Sales acrescentou que a capacidade de ventilação no país iria duplicar nos próximos dias, entre ofertas, compras e empréstimos de ventiladores invasivos e não invasivos: 400 ventiladores invasivos foram oferecidos por várias entidades; outros 140 ventiladores não invasivos foram emprestados; e por fim cerca de 900 foram adquiridos pela Administração Central do Sistema de Saúde.
O número de doentes de covid-19 nos cuidados intensivos é agora de 245, segundo o boletim epidemiológico da Direcção-Geral da Saúde desta sexta-feira. Em Itália, os médicos chegaram ao ponto de ter de decidir entre quem vivia e quem morria, entre quem recebia e quem não recebia um ventilador.
Vamos às apresentações dos dois ventiladores portugueses. Um deles é o Pneuma. O seu desenvolvimento foi coordenado pelo Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (Inesc Tec) e pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP). É o que se designa por “ventilador de campanha para pandemias”, ou “ventilador pandémico”. Por isso, funcionará como uma alternativa em situações de emergência, por exemplo em ambulâncias ou hospitais de retaguarda.
O outro é o ventilador Atena e a sua génese está no Ceiia – Centro de Engenharia e Desenvolvimento de Produto, em Matosinhos. Destina-se ao uso em unidades de cuidados intensivos, particularmente em doentes com pneumonia aguda, e não como um sistema de ventilação alternativo.
O custo (apenas) de produção de cada um destes dispositivos reflecte o seu grau de complexidade e propósitos distintos. No Pneuma, esse custo é abaixo de 300 euros e no Atena, é cerca de dez mil, segundo os responsáveis de cada projecto. O Pneuma é propriedade intelectual aberta, que pode ser copiada e melhorada por quem quiser fazê-lo e inspirou-se no projecto de um sistema de ventilação também de código aberto da Universidade de Rice, nos Estados Unidos. Já o Atena destina-se à comercialização, incluindo o mercado internacional. Por fim, a equipa do Pneuma pretende ter 200 unidades para entregar à Administração Regional de Saúde do Norte (ARS Norte) até ao final deste mês e depois será produzido em larga escala por grupos empresariais da Marinha Grande, apenas à medida dos pedidos. Já a equipa do Atena espera ter as primeiras 100 unidades fabricadas até ao final de Maio.
Em ambos os projectos a comunidade científica, tecnológica, médica e industrial portuguesa reuniu-se numa conjugação de esforços que, seguindo caminhos distintos, procurou chegar ao mesmo fim, que é o de salvar doentes. Cada um destes ventiladores tem o seu lugar essencial ao longo do combate a esta pandemia.
Nestes esforços, o Ministério da Ciência incentivou o uso da Lei do Mecenato para financiar este tipo de projectos. Quatro mecenas decidiram entretanto financiar, cada um com 250 mil euros, as primeiras 100 unidades do ventilador Atena: a EDP, a Fundação Calouste Gulbenkian, a Fundação la Caixa/BPI e a REN. “Os 100 ventiladores vão ser oferecidos aos Serviço Nacional de Saúde”, diz José Rui Felizardo, presidente executivo do Ceiia.
Também a equipa do Inesc Tec tem a Associação dos Industriais Metalúrgicos e Metalomecânicos e Afins de Portugal a pagar uma pré-série de seis a 12 ventiladores (para testes já em pessoas) e alguns dos primeiros ventiladores do lote de 200 a entregar à ARS Norte. “Estamos seguros de que arranjaremos, entretanto, o financiamento em falta para os 200 ventiladores”, afirma José Manuel Mendonça, presidente do Inesc Tec. Vamos agora às particularidades de cada um dos projectos.
O Pneuma
A ideia do Pneuma, um ventilador alternativo que recorre a um balão auto-insuflável, surgiu na sequência de um movimento lançado por um estudante português (de neurociências) na Universidade de Harvard, João Nascimento. Perante a falta de ventiladores no combate à covid-19, João Nascimento lançou o projecto Open Air para a construção de um ventilador de colaboração mundial com propriedade intelectual aberta, barato e fácil de montar e, mal fez um tweet na sua conta, a 11 de Março, a pedir a quem quisesse que se juntasse, choveram centenas de reacções.
A 11 de Março, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estava precisamente a declarar que a epidemia de covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2, se tinha transformado numa pandemia. Inicialmente de causa estranha, uma forma estranha de pneumonia tinha surgido em Dezembro de 2019 na cidade chinesa de Wuhan, na província de Hubei. Para fazer face à epidemia, a OMS recomendou aos países que obtivessem ventiladores pulmonares, uma vez que cerca de 15% dos doentes têm uma pneumonia e 5% precisam de ventilação para conseguir respirar.
A questão de um ventilador de produção local, rápida e barata entrou então no radar da equipa do Inesc Tec, que veio a encontrar no site da Universidade de Rice um dispositivo de compressão e descompressão automática de um balão auto-insuflável. Foi neste último projecto que esta equipa – tal como, aliás, o MIT – se inspirou para o seu ventilador e foi esse projecto que o investigador Nuno Cruz, do Centro de Robótica e Sistemas Autónomos daquele instituto, levou à ARS Norte para ver se estavam interessados em algo semelhante.
“Definimos este sistema como as mãos de um bombeiro ou enfermeiro a actuar automaticamente num balão auto-insuflável. Nas ambulâncias, há um balão que é usado para ventilar as pessoas de forma manual: alguém bombeia o ar e tem de ser feito com cadência e volume certos. O que fizemos foi automatizar isso ao ritmo certo”, descreve Nuno Cruz, que coordena neste projecto uma equipa de mais de duas dezenas de engenheiros, médicos e outros especialistas.
A equipa, a trabalhar pro bono, arrancou a 16 de Março e no final dessa semana tinha construído o primeiro protótipo de um ventilador invasivo (o doente é entubado) para situações de emergência. Já foi testado em pulmões artificiais no Hospital de São João e tem estado em testes em pulmões artificiais do Hospital de Santo António, ambos no Porto. Há já quatro protótipos e, até meados do mês, a equipa tenciona ter seis a 12 para ensaios clínicos naqueles dois hospitais e noutros que a ARS Norte indique, para validação pelos médicos.
Tanto José Manuel Mendonça como Nuno Cruz deixam claro por que razão este ventilador, que permite o controlo do volume de ar, da frequência respiratória ou relação inspiração-expiração e inclui alarmes de detecção de paragem, pode revelar-se de importância vital. “Não tem a sofisticação de um ventilador dos cuidados intensivos. É mais simples, mas tem a vantagem de ser rápido de desenvolver, testar e construir. É um back-up em ambulâncias e hospitais de segunda linha para libertar os ventiladores de 20 mil euros, mais sofisticados, para os casos mais graves”, sublinha José Manuel Mendonça. “É para evitar as situações dramáticas de Itália e Espanha. Não havia ventiladores para toda a gente. Aí pode ser um grande trunfo”, acrescenta. E, numa situação grave, pode ventilar-se assim um doente enquanto espera por um ventilador nos cuidados intensivos. “Pode ser útil para salvar pessoas”, resume Nuno Cruz.
Qual é o grande desafio deste projecto?, perguntámos. “O desafio é fazer isto em poucos dias. É o tempo contado em horas e dias, não em meses e anos”, responde José Manuel Mendonça.
Entretanto, surgiram em Portugal outros projectos de ventiladores de propriedade intelectual aberta, por exemplo no Instituto Politécnico de Leiria, no Instituto Politécnico de Viseu ou no Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP) e que derivaram do projecto Open Air, estando ainda em fases preliminares.
A equipa do Pneuma vai agora divulgar tudo o que fez, para permitir a produção local deste ventilador alternativo em qualquer parte do mundo. “O nosso objectivo é disponibilizar a informação para quem quiser fazê-lo em África ou no Brasil. A ideia é que todos possam ir ao nosso site pegar no desenho de engenharia. Estamos à espera que não seja preciso em Portugal. Se for útil noutros países, excelente.”
O Atena
Os primórdios do Atena remontam a Janeiro, quando uma empresa de Macau perguntou ao Ceiia se tinham capacidade para participar no projecto de um ventilador. “Pusemos duas pessoas a estudar o assunto. Mas, na altura, achámos que estava demasiado distante de nós”, conta José Rui Felizardo. “Quando a pandemia foi declarada e com o efeito de proximidade – Itália tinha começado a ter aquele peso todo –, justificou-se que olhássemos novamente para o assunto. Havia aqui uma ameaça latente. Achámos que faria sentido pensar no desenvolvimento de um ventilador com a indústria nacional. Não podíamos ser só nós.”
Por isso, José Rui Felizardo faz questão de dizer que este não é um projecto do Ceiia, é um “projecto de âmbito nacional” em que o CEiiA esteve na génese e agora envolve universidades, como o Instituto Superior Técnico, empresas e médicos de hospitais públicos e privados do Norte e Sul do país, bem como a Escola de Medicina da Universidade do Minho.
Graças ao trabalho entre 106 engenheiros do Ceiiae a comunidade médica, em três semanas o Atena chegou à fase de um protótipo funcional e está agora a ser testado em pulmões artificiais cedidos pela Faculdade de Medicina do Minho. “É um ventilador mecânico invasivo para ser usado em ambiente de cuidados intensivos no tratamento de uma pneumonia aguda”, explica José Rui Felizardo. Cumpre assim os requisitos definidos para o tratamento de doentes em falência respiratória aguda (como parâmetros sobre a frequência respiratória, a fracção inspirada de oxigénio ou o rácio entre inspiração e expiração) e emite alarmes críticos relativos à monitorização do doente.
Depois dos 100 ventiladores até final de Abril, o objectivo é produzir 400 até ao final de Maio, ainda no Ceiia. E, a partir daí, iniciar a produção fora, através de empresas interessadas na industrialização do ventilador, com o objectivo de atingir 10.000 unidades.
Perguntámos também a José Rui Felizardo qual é o grande desafio deste projecto. “O tempo e a compra de alguns componentes na cadeia de fornecimento internacional”, respondeu-nos, acrescentando que a Sonae disponibilizou a sua central de compras para a aquisição dos componentes, o que deu segurança à equipa em relação à produção de 100 ventiladores no prazo pretendido. “Os componentes mais críticos são duas válvulas. Para a série de 100 unidades temos isso resolvido. A partir daí o desafio vai ser grande. Se não existirem, vamos ter de substituí-las por outras e isso implica alterar a parte de controlo de oxigénio e ar”, explica.
“O problema agora não é o projecto, é a optimização de componentes e custos”, acrescenta José Rui Felizardo, que gostaria de ver a bordo do Atena outras empresas portuguesas, por exemplo no fabrico das tais válvulas. “O nosso objectivo é que os ventiladores fiquem mais baratos se usarmos a indústria nacional e não comprarmos fora.”
Nos planos estão alterações futuras do ventilador. Numa versão posterior pretende-se incluir o controlo à distância. “Interessa que um médico possa controlar vários ventiladores remotamente”, avança José Rui Felizardo, dizendo que a Nos está a trabalhar na parte de controlo remoto do projecto.
Talvez aqui as equipas do Ceiia e do Inesc Tec venham igualmente a juntar-se. José Rui Felizardo desafiou José Manuel Mendonça para unirem esforços no controlo remoto do Atena. “Queremos o envolvimento deles no nosso módulo de comunicação e na evolução do nosso produto, de forma a que o considerem também deles.” O repto está lançado.