Quem pode decretar um cordão sanitário?
O PÚBLICO explica o enquadramento legal desta medida e como pode ser concretizada. Porque é que uns falam em “cordão” e outros em “cerca”.
O que é um cordão sanitário ou uma cerca sanitária?
Os dois termos são sinónimos. O primeiro é mais usado pelos médicos, enquanto o segundo surge nas leis da protecção civil. Trata-se de um perímetro que delimita um determinado local, que deverá ficar isolado dos territórios vizinhos. Se for feito à volta de um município, em princípio, todas as entradas e saídas rodoviárias e ferroviárias que ligam esse concelho aos territórios vizinhos são vigiadas pelas forças de segurança de modo a não permitir que uma pessoa consiga sair ou entrar no local que está isolado. Pode haver entradas e saídas excepcionais, para os profissionais de saúde ou para o abastecimento do município a nível de bens essenciais.
Que cercas sanitárias existem actualmente?
A única que foi decretada no âmbito do combate à pandemia da covid-19 foi no concelho de Ovar. E não há memória de uma medida destas no último século. O cordão sanitário foi constituído à volta daquele município no dia 17 de Março e vigora, pelo menos, até 2 de Abril, podendo ser prorrogado ou alteradas algumas das suas regras. Esta segunda-feira foi própria directora-geral da Saúde que admitiu, em conferência de imprensa, que está a ser equacionado um outro cordão sanitário, desta vez no concelho do Porto. “O Porto tem estado a receber todo o apoio nacional. Quanto ao cordão sanitário, provavelmente será hoje tomada uma decisão nesse sentido”, disse Graça Freitas.
Quem pode decretá-la?
O que foi decretado no caso de Ovar foi a situação de calamidade, que teve várias consequências uma das quais a determinação da cerca sanitária. A declaração de calamidade está prevista na Lei de Bases da Protecção Civil (e pode implicar ou não uma cerca sanitária) e tem que ser decretada por uma resolução do Conselho de Ministros. Antes disso, porém, pode haver o chamado “reconhecimento antecipado”, através de um despacho do primeiro-ministro e do Ministro da Administração Interna. Foi isso que aconteceu a 17 de Março com um despacho assinado por António Costa e por Eduardo Cabrita onde se “reconhece a necessidade da declaração da situação de calamidade no município de Ovar”. No dia 19 é que foi publicada a resolução do Conselho de Ministros. Mas as autoridades de saúde (delegados de saúde locais, regionais e a nacional, a directora-geral de saúde) também podem tomar uma decisão destas.
Qual é o papel das autoridades de saúde nesta decisão?
A directora-geral de Saúde, Graça Freitas, disse esta segunda-feira que a decisão de impor uma cerca sanitária compete às autoridades regionais e nacionais de saúde e ao Ministério da Saúde. A professora de Direito da Saúde, Paula Lobato de Faria, da Escola Nacional de Saúde Pública, defende que a directora-geral de Saúde, como autoridade de saúde nacional, pode determinar um cordão sanitário, já que tem amplos poderes discricionários e que é independente do poder político. “Tem uma independência técnica que decorre do facto de ser médica e especificamente da área da saúde pública”, sublinha Paula Lobato Faria. O decreto-lei que regula as competências das autoridades de saúde (delegados de saúde locais, regionais e a nacional, a directora-geral de saúde) determinam que estas asseguram “a intervenção oportuna e discricionária do Estado em situações de grave risco para a saúde pública, competindo-lhes, ainda, a vigilância das decisões dos órgãos e serviços operativos do Estado em matéria de saúde pública”. O número 2 do artigo 5º determina que “as autoridades de saúde podem utilizar todos os meios necessários, proporcionais e limitados aos riscos identificados que considerem prejudiciais à saúde dos cidadãos”.
Qual foi o papel da autoridade de saúde no caso de Ovar?
Na introdução do despacho conjunto e na resolução que declarou a calamidade que a mesma ocorria “atendendo a que a autoridade de saúde do município de Ovar reconheceu que o município se encontra numa situação epidemiológica compatível com transmissão comunitária activa, o que significa que o risco de transmissão se encontra generalizado, podendo mesmo dar origem a novas cadeias de transmissão em zonas vizinhas”. Ou seja, percebe-se que a decisão foi solicitada ou pelo menos coordenada com a autoridade de saúde local, mas não tomada por esta. Segundo o artigo 34 da Lei de Bases da Saúde, à autoridade de saúde “compete a decisão de intervenção do Estado na defesa da saúde pública, nas situações susceptíveis de causarem ou acentuarem prejuízos graves à saúde dos cidadãos ou das comunidades, e na vigilância de saúde no âmbito territorial nacional que derive da circulação de pessoas e bens no tráfego internacional”. Para defender a saúde pública a autoridade de saúde pode ordenar a suspensão de actividade ou o encerramento dos serviços, estabelecimentos e locais de utilização pública e privada, quando funcionem em condições de risco para a saúde pública; desencadear exercer a vigilância sanitária do território nacional, além de proceder à requisição de serviços e profissionais de saúde em casos de epidemias graves e outras situações semelhantes. “Em situação de emergência de saúde pública, o membro do Governo responsável pela área da saúde toma as medidas de excepção indispensáveis, se necessário mobilizando a intervenção das entidades privadas, do sector social e de outros serviços e entidades do Estado”, lê-se no último número do mesmo artigo. Também o decreto-lei que regula as competências dos delegados de saúde determina que “em situações de emergência grave em saúde pública, em especial situações de calamidade ou catástrofe”, o ministro da Saúde “toma as medidas necessárias de excepção que forem indispensáveis, coordenando a actuação dos serviços centrais do Ministério com as instituições e serviços do Serviço Nacional de Saúde e as autoridades de saúde de nível nacional, regional e municipal”.
O facto de estarmos em estado de emergência pode alterar alguma coisa?
Em princípio, não. Na altura em que o Governo avançou com a cerca sanitária de Ovar, que dura, pelo menos, até 2 de Abril, o Presidente da República ainda não tinha feito o decreto a declarar o estado de emergência. Tal só aconteceu no dia seguinte, ou seja, 18 de Março. No decreto presidencial apenas se refere uma vez a expressão “cerca sanitária” no âmbito de um artigo que determina que fica parcialmente suspenso “o direito de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional”. Logo de seguida diz-se que “podem ser impostas pelas autoridades públicas competentes as restrições necessárias para reduzir o risco de contágio e executar medidas de prevenção e combate à epidemia”, de que as cercas sanitárias são um exemplo. Fica claro que este decreto, por si só, não habilita o Governo a decretar este tipo de medidas. Também na lei que estabelece o Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência não aparece qualquer referência às cercas sanitárias. Relativamente ao caso de Ovar, quando o Governo regulamentou o estado de emergência fez especificamente um artigo para salvaguardar que o decreto não prejudicava as medidas já adoptadas, “no âmbito do estado de calamidade declarado para o concelho de Ovar”. Isto porque as medidas tomadas em Ovar eram mais restritivas do que as adoptadas a nível nacional.