Guterres pediu um cessar-fogo em todos os cantos do mundo. Mas as guerras não estão de quarentena
Secretário-geral da ONU suplicou o fim de todos os conflitos activos em nome de uma batalha de todos contra um “inimigo comum” – o vírus. Apesar de alguma redução da conflitualidade, Síria, Iémen, Líbia ou Ucrânia continuam em pé de guerra.
Em tempos de pandemia, não faltam chefes de Estado, de Governo e outros actores políticos a empregar conceitos bélicos para motivarem os cidadãos a derrotar o coronavírus. O vírus é o inimigo, cumprir ordens é a arma, “achatar a curva” é a missão e o isolamento social é o objectivo a cumprir.
António Guterres adoptou essa abordagem, transportando-a para a esfera global. “O nosso mundo enfrenta um inimigo comum: a covid-19”, proclamou o secretário-geral das Nações Unidas num vídeo partilhado em todos os canais de comunicação da ONU, há cerca de uma semana. “O vírus não se importa com etnias ou nacionalidades, facções ou credos. Ataca todos, implacavelmente”.
Mas o objectivo de Guterres, acompanhado nesse desejo pelo Papa Francisco, era mais amplo do que o simples apelo à união de todos no combate ao coronavírus. O ex-primeiro-ministro português olha para esta ameaça como uma oportunidade para se conseguir algo maior: o fim – ou a suspensão, pelo menos – de todos os conflitos armados activos em todo o mundo.
“A fúria do vírus ilustra bem a loucura da guerra. Vamos acabar com a doença da guerra e lutar contra a doença que está a devastar o nosso mundo. É por isso que peço um cessar-fogo global e imediato em todos os cantos do mundo”, implorou o secretário-geral da ONU. “Chegou a altura de colocarmos o conflito em isolamento e de nos focarmos na verdadeira batalha das nossas vidas”.
A preocupação de Guterres não assenta apenas no conflito em si, mas no potencial impacto devastador do vírus em países ou regiões onde há milhões de deslocados em campos de refugiados, onde não há sistemas de saúde ou hospitais em funcionamento, onde não há forma de controlar os fluxos internos ou externos de pessoas e o onde controlo do Estado pura e simplesmente não existe. E onde é muito difícil rastrear os níveis de contágio do vírus.
Uma semana depois do apelo de Guterres, como se encontram os principais palcos de guerra?
O que será dos refugiados na Síria?
A guerra civil síria cumpriu no início do mês o seu nono ano. Apoiado por Moscovo, Bashar al-Assad recuperou o controlo de grande parte do país e as suas tropas mantêm-se focadas na ofensiva contra Idlib, a Noroeste, controlada pelos rebeldes, apoiados pela Turquia. A Nordeste mandam as forças curdo-árabes.
Apesar do acordo de cessar-fogo entre o Presidente russo, Vladimir Putin, e o seu homólogo turco, Recep Tayyip Erdogan, e dos constantes apelos da ONU para se suspenderam as hostilidades por causa o vírus, os combates prosseguem na região do último reduto rebelde, com particular incidência nos últimos dias.
Não obstante, tanto o Governo de Assad, como as Forças Democráticas Sírias, já puseram em prática medidas de contenção da pandemia nas respectivas áreas de actuação. A grande preocupação, no que ao combate à covid-19 diz respeito, são os milhões de sírios sem acesso a tratamento médico ou a hospitais, nas zonas mais afectadas pela guerra e nas chamadas “terras de ninguém”. Em Idlib há três milhões de pessoas em condições muito precárias.
A mesma espiral de violência no Afeganistão
A ameaça do coronavírus já teve, pelo menos, uma consequência nas dinâmicas do conflito afegão, escreve o Ha'aretz: os Estados Unidos decidiram acelerar o processo de retirada das suas tropas do território – e também estão a considerar fazê-lo na Síria e no Iraque.
Ainda assim, e apesar de algumas mudanças de hábitos nos contactos entre o Governo e os representantes taliban, a guerra continua em curso. O grupo islamista tem violado repetidamente o frágil acordo de cessar-fogo, mediado pelos EUA, e a representação local do Daesh continua a aproveitar a falta de avanços nas negociações entre as dois principais candidatos às ultimas presidenciais, que continuam o seu braço-de-ferro – o Presidente Ashraf Ghani e o presidente declarado, Abdullah Abdullah – para prosseguir a sua vaga de ataques terroristas. Na passada quarta-feira, matou 25 pessoas, num atentado em Cabul.
Hostilidades suspensas no Iémen, mas só em intenção
No “conflito esquecido” do Iémen, onde a ONU identifica a maior crise humanitária da actualidade, ambas as partes em disputa aceitaram suspender as hostilidades. Mas segundo uns e outros, os rivais ficaram-se apenas pela intenção. E, por isso, pouco ou nada mudou.
Este domingo, o Exército saudita – que apoia o Governo iemenita – acusou os rebeldes houthis – respaldados pelo Irão – de terem lançado dois mísseis na direcção de Riad, capital da Arábia Saudita, e de uma outra cidade, Jizan. Os separatistas, por sua vez, revelaram ter conseguido enxotar aviões da coligação que se preparavam para atacar a cidade de Maarbi.
Ou seja: os 24 milhões de iemenitas com necessidade urgente de assistência estão na mira do coronavírus enquanto as partes não colocarem as suas promessas em prática.
Combates intensificaram-se na Líbia
“Os dois lados estão a explorar o coronavírus”, disse ao Independent Anas el-Gomati investigador de um think tank líbio.
Apesar de terem começado a ser revelados os primeiros casos de infecção no país, os combates entre as forças do marechal Khalifa Haftar, líder do Exército Nacional Líbio (ENL), e o Exército líbio, leal a Fayez Al-Sarraj, chefe do Governo da Líbia, reconhecido pelas Nações Unidas, intensificaram-se nos últimos dias, nos últimos dias. E em várias frentes: na sexta-feira houve confrontos nos arredores da capital, Trípoli, e nas cidades costeiras de Sirte e Misrata.
Conflito no Leste da Ucrânia continua
Tal como a grande maioria dos países europeus, a Ucrânia decretou várias medidas de isolamento social e encerramento de estabelecimentos comerciais não-essenciais. O país tem mais 400 casos confirmados de infecção pela covid-19 e o seu Governo está a agir em conformidade com as recomendações da Organizaçao Mundial de Saúde. Mas há um conflito em curso na Ucrânia, mesmo que em fase de impasse. Luhansk e Donetsk, na região de Donbass (a Leste), continuam nas mãos de separatistas.
As decisões tomadas por causa do vírus, nomeadamente a proibição de ajuntamentos públicos, acabaram por abafar os protestos em Kiev, contra o Presidente President Volodimir Zelenski, por causa da decisão de aceitar representantes das regiões separatistas nas negociações para se encontrar uma solução para o conflito. Há denúncias da chegada de mais tanques da Leste da Ucrânia.
África martirizada como sempre
São muitos os conflitos activos na África subsariana e, por isso, são muitas as preocupações derivadas da propagação e das consequências do vírus, em países onde há muitas pessoas deslocadas, vastas áreas de fraca implementação estatal e poucos estabelecimentos ou unidades de saúde e apoio médico. E onde a devastação causada pelo Ébola é um impressionante alerta.
Mas os conflitos armados na República Centro-Africana, na Somália, na República Democrática do Congo, na Nigéria ou no Sudão do Sul não deram sinais de abrandamento com os apelos de Guterres e até as incursões de grupos fundamentalistas islâmicos a Norte de Moçambique intensificaram-se na última semana.
Citado pelo El País, Bakary Sambé, director do Instituto Timbuktú, explica: “Quando o mundo está a olhar para o outro lado, os grupos armados reposicionam-se, fazem ajustes de contas e aproveitam a confusão para atacar”.
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