Entre os turnos de 15 horas e a falta de material: a luta dos lares pela sobrevivência dos mais frágeis

Lares têm auxiliares de baixa e funcionárias com horários sobrecarregados enquanto tomam medidas para evitar contágios dentro das instituições. Material de protecção começa a escassear em algumas residências – onde os dias são uma luta contra o medo e o isolamento.

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Maria João Gala (Arquivo)

Dentro do lar Clave de Sol, no Porto, a vida levou um abanão. A 25 de Março, Ana Magalhães, directora técnica dessa residência sénior, mandou cinco das sete auxiliares que habitualmente tem à disposição para casa, sem data definida de regresso. No mesmo dia, as restantes funcionárias da instituição, com a líder da equipa, confinaram-se, “até quando for preciso”, lá dentro. A ideia, explicava a gestora, é “limitar o ‘entra e sai’ típico do cruzamento de turnos ao máximo”. “Há quem tenha de apanhar dois transportes para chegar ao trabalho. Se uma de nós entra aqui infectada, o vírus espalha-se num instante. Estamos num momento em que não dá para vacilar.”

Medidas igualmente drásticas foram tomadas pela residência Bocage, em Lisboa. Otília Almeida, responsável do espaço, lembra o “grande sacrifício” que, há pouco mais de uma semana, teve de fazer ao implementar turnos de 15 horas. Com esta mudança, assinala, “as auxiliares não podem trabalhar dois dias seguidos”. Caso contrário, “não havia como aguentar a sobrecarga”. Ninguém pode ir lá fora durante este alargado expediente – e dentro dos corredores, há uma monitorização apertada. “Volta e meia”, os telemóveis são cuidadosamente limpos pelos funcionários, que não podem, por exemplo, circular sem uma máscara protectora. Fora de questão está também vestirem a bata sem, primeiro, colocarem num canto os sapatos com que vieram da rua. A temperatura deve ser medida com regularidade e a desinfecção das mãos é igualmente fulcral. Alterações de rotinas que aconteceram de maneira apressada, mas que têm sido “rapidamente assimiladas” pelas técnicas, numa fase em que a propagação do novo coronavírus impõe uma rigorosa defesa da vida dentro dos lares portugueses.

Rafaela Almeida, do lar Casa Azul, confessa ao PÚBLICO – enquanto, com um segundo telemóvel na mão, tenta fazer uma videochamada, para que um dos idosos da residência consiga, à distância, ver e falar com a filha – que, duas semanas depois de adoptado pela instituição um exigente plano de contingência para responder ao surto de covid-19, “começam a parecer normais” as mudanças de comportamentos que, na verdade, correspondem a medidas extraordinárias. A coordenadora deixou de recolher com estranheza as encomendas que são deixadas nas escadas, uma vez que os fornecedores já não têm permissão para entrar nos salões principais, e desinfectar “constantemente” as maçanetas das portas entrou nas rotinas. São exigentes estes reforços na vigilância das actividades e nos cuidados de higiene, mas, observa, “a equipa está consciente do papel que precisa de ter”. “Há dias cansativos e complicados, mas o nosso foco está sempre nos utentes.”

E estes, garante, “têm conseguido manter a tranquilidade” – mesmo num momento em que não podem receber visitas ou passar os fins-de-semana fora da instituição, com o resto da família. Por agora, os telefonemas encurtam as distâncias. As saudades existem sempre, mas “não há melancolia”, assegura Ana Magalhães. “Quanto muito”, avança a responsável da Clave de Sol, “a tensão é mais nossa do que dos residentes, porque olhamos para qualquer tossezinha como um sinal de alerta”.

O medo de quem está de fora

“Por um lado, estou satisfeita, porque ela parece estar calma. Por outro, e com tudo o que vamos ouvindo nas notícias, passo os dias cheia de medo.” O relato é de Ester Aguilar, que, desde o fim de Fevereiro, tem a mãe de 78 anos na Casa dos Lilases, uma residência na Rua António Enes, em Lisboa. “Para já, ela ainda não perdeu completamente a lucidez, mas já se esquece de algumas coisas. E, quando deixou de ter visitas, pensou que tinha sido abandonada”, sublinha a filha, que, todos os dias, telefona para o lar, e, desde que o contacto presencial deixou de ser uma opção viável, tem tentado também conversar por videochamada.

“Ela tem três filhos e nove netos. Esteve sempre rodeada da família. Agora, de repente, vê-se ali sozinha. É um choque muito grande”, revela Ester, preocupada com a capacidade de a instituição onde a mãe está hospedada conseguir responder a eventuais situações de crise. “Ela costumava ficar num quarto com uma só cama, mas colocaram-na com outra colega para poderem transformar o sítio onde dormia num espaço de isolamento. Só espero que esse não seja o único dentro do lar. Moram lá 70 idosos. Se acontece alguma coisa, uma sala de emergência apenas não chega.”

Falta de material é preocupante

Na Companhia da Saúde, em Campolide, vivem apenas 15 utentes, pelo que as preocupações são diferentes. A responsável pelo lar, Paula Paiva, tem já algumas auxiliares de baixa para que possam ficar em casa com os filhos menores, e as que ainda conseguem trabalhar começam a ficar sem os kits descartáveis de protecção e cuidados higiénicos que usam diariamente. Feitas as contas, as batas, toucas e máscaras que ainda existem nos cacifos servem para as próximas duas semanas. Depois disso, é preciso renovar o stock. Mas, esclarece a directora técnica do espaço, há um problema: “A Santa Casa da Misericórdia não cede material porque diz que é só para consumo interno e os nossos fornecedores habituais não respondem. Já fizemos vários pedidos, mas não deram em nada.”

Perante as contrariedades, é “o enorme espírito de entreajuda” que, dentro dos possíveis, tem facilitado as operações. Às 8h e às 22h, as novas horas de entrada e saída na Companhia da Saúde, Paula Paiva dá boleia às colegas que, de outra forma, precisariam de apanhar um autocarro. É, admite, “um transtorno enorme”, mas, ao mesmo tempo, “uma ginástica fundamental para nos salvaguardarmos”. “É óbvio que temos receio de tudo o que possa acontecer, mas a adaptação tem sido incrível”, conclui a gestora. “Sabemos que precisamos de fazer esforços em conjunto e percebemos que, por trabalharmos num lar, os cuidados a ter são ainda maiores.”

No lar Bocage, não existe um horário de visitas, pelo que, por norma, conta Otília Almeida, “os familiares estão cá o dia todo”. As medidas de contingência que tornam este cenário impraticável pesam sobre os idosos na instituição. “Não verem aquele movimento todo tem sido complicado.” A residência, como tantas outras na mesma posição, tem tentado disfarçar essa sensação de isolamento através da aposta em mais actividades interactivas. As videochamadas são o outro remendo possível nesta fase. “O facto de nós fazermos a ponte e de eles conseguirem ver as famílias tranquiliza toda a gente”, conclui a directora. “Queremos tentar dar um mínimo de leveza – para que os dias não se tornem assim tão cinzentos.”

Texto editado por Ana Fernandes

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