Semana a semana, o alojamento local vê o negócio a afundar-se
O turismo parou e as casas esvaziaram-se, sem perspectiva de receita nos próximos meses. Associação diz que o choque está a ser sentido de forma generalizada pelo sector, independentemente da sua dimensão, e pede apoios a fundo perdido que garantam salários dos trabalhadores.
“Nos primeiros meses, tudo indicava que este ia ser um ano excepcional. Agora, as perspectivas são muito negras.” A síntese é feita por João P., 50 anos, proprietário de uma unidade de alojamento local (AL) em Cascais, que é a sua única fonte de rendimento. O ponto de viragem deu-se na manhã de 14 de Março, quando recebeu o cancelamento por parte de um casal de alemães que deveria estar prestes a fazer o check-in. Iam ficar hospedados até dia 21 mas em vez disso ligaram a dar a notícia de que nem tinham saído do seu país — ele é médico e teve de cancelar a viagem. “Depois”, diz João, “sucederam-se uma série de cancelamentos”.
Onde havia perspectivas de receitas, como as estimadas com as férias da Páscoa em Abril — período tão propício para o sector do turismo como o Verão, embora mais curto —, há agora enorme vazio, ou pior do que isso, um enorme buraco.
Esse é também o cenário pintado por Ana Cunha, que gere quatro apartamentos em Lisboa e uma casa em Sesimbra. “As reservas estão completamente paradas. Para Abril está tudo praticamente cancelado”, nota a proprietária.
Ana Cunha vive exclusivamente do AL. O marido trabalha numa imobiliária e o cenário que se lhe afigura não augura tempos fáceis. Com as casas vazias e sem saber quando se poderão voltar a encher, o futuro é incerto para quem depende desta actividade. “Isto vai ser o caos para o alojamento local”, prevê. E as dificuldades já começaram.
No caso de João P., aquela que é a sua única fonte de rendimentos apresenta-se agora como fonte de despesa, devido às contas para pagar de água (tarifa comercial) e luz (que inclui prestações de instalação de painéis solares), além de alguns créditos. A vantagem é a ausência de pagamentos de empréstimos à habitação, já que o seu AL está inserido numa propriedade da família, onde reside. A desvantagem é que, por o AL ser o único rendimento, não lhe foi permitido inscrever-se na Segurança Social. Ou seja, não tem descontado para a reforma, nem para uma eventual doença ou desemprego – algo que se avizinha agora para muitas pessoas, com o Banco de Portugal a estimar que a taxa de desemprego volte aos 10% este ano.
Choque geral
Nos últimos anos, o AL tem vindo sempre a crescer à boleia do turismo, e há actualmente quase cem mil registos por todo o país, com destaque para as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto e para o Algarve. Aqui, cabem desde pequenos proprietários a grandes empresas, com vários negócios na sua órbita, desde limpezas a transportes. Actualmente, estima-se que o sector represente mais de um terço das dormidas do país. No caso do Porto, o peso é da ordem dos dois terços e em Lisboa situa-se acima dos 50%, de acordo com a ALEP.
Acusados por muitos de desertificar zonas históricas e um dos símbolos da pressão turística, o AL trouxe também reabilitação urbana, com a canalização de poupanças internas, empréstimos bancários e investimento estrangeiro. Agora, tudo está a abanar por causa da crise trazida a nível global pela covid-19, com o circuito das viagens praticamente paralisado.
Eduardo Miranda, presidente da Associação do Alojamento Local em Portugal (ALEP) não tem dúvidas em afirmar que o choque está a ser sentido de forma generalizada por todo o sector, independentemente da sua dimensão. “Se no início poderia haver uma pequena diferença, neste momento todos estão a ser afectados”, diz. Ainda assim, reconhece que “é muito mais duro para quem tenha no AL o seu ganha-pão” como as microempresas e titulares de AL nos centros urbanos e no Algarve.
Na Homing, empresa que gere cerca de 300 apartamentos em Lisboa, Porto e Algarve, a gestão está a ser feita “dia-a-dia”, desde que as reservas começaram a cair em catadupa. “Tínhamos o mês de Março praticamente cheio, assim como Abril, que estava composto, e neste momento está praticamente tudo vazio”, diz João Bolou Vieira, presidente executivo da empresa.
A meio do mês, já a trabalhar a meio-gás, alguns funcionários foram mandados para casa para cumprirem o isolamento. João Bolou Vieira não antecipa, para já, o que acontecerá aos 70 trabalhadores da empresa, mas despedimentos podem estar na calha. “Muito provavelmente terá de acontecer, mas não sabemos em que moldes.”
Quando contactado pelo PÚBLICO, o empresário atirava mais decisões para o final desta semana, aguardando novidades do Governo relativas ao apoio às empresas. “Há medidas que são interessantes, mas neste momento, no nosso sector, tivemos quebras de 90% de um dia para o outro. O impacto é brutal”, diz João Bolou Vieira.
É por isso que diz que as ajudas em termos de isenção temporária do pagamento das contribuições à Segurança Social, o layoff, “medidas que têm um impacto mais imediato, são bem-vindas”. Mas, “o mais premente”, sublinha, “é haver tesouraria para as empresas neste momento para que possam pagar salários nos próximos meses”. Se essas medidas demorarem, perspectiva, “muitas microempresas vão acabar”.
O peso do tempo
Eduardo Miranda elenca como positiva a linha de crédito de 60 milhões de euros do Turismo de Portugal para microempresas e empresários em nome individual, destacando que estes últimos são “a maior parte do sector do AL”. Mesmo assim, afirma, essa e outras linhas apresentadas têm seguido “uma lógica de financiamento, ou de adiar tributações e pagamentos”, que, mesmo com condições favoráveis, “inevitavelmente significam mais dívida”.
No caso de João P., por exemplo, este está hesitante sobre pedir um empréstimo, mesmo sem juros como é o caso da linha de 60 milhões, porque ainda não sabe como é que tudo isto vai acabar, e se terá dinheiro para saldar a dívida. Ana Cunha tem as mesmas preocupações: “A gente vai pedir o dinheiro e não sabe como é que vamos depois pagar. Estamos a falar de uma empresa mínima que não tem empregados, agora veja quem tem.”
O impacto surgiu na pior altura do calendário, após a época baixa e alguns investimentos feitos com a época alta à vista, ou seja, com menos margem de tesouraria — em Outubro a realidade do sector seria diferente. “Se a crise for mais prolongada do que se espera”, diz Eduardo Miranda, e apanhar o período do Verão, “vamos ter uma situação estrutural muito complicada e não se vai lá com empréstimos”.
Para este responsável, a alternativa terá de passar por apoios a fundo perdido que garantam salários, como se está a fazer, diz, em países como a Holanda e Dinamarca. E volta a reclamar duas medidas, agora num contexto de agravamento do sector: o fim do pagamento de mais-valias a quem desista do AL, sem condições (agora o imóvel tem de ficar pelo menos cinco anos no mercado de arrendamento para que isso aconteça), e que se permita a opção de pagar Segurança Social a quem tenha o AL (moradia ou apartamento) como único rendimento (tal como João P. gostaria que já tivesse acontecido) e não como segunda actividade.
Para já, vão resistindo algumas reservas, mas isso não é necessariamente um valor seguro para o futuro.
Há o caso, por exemplo, de uma proprietária de dois T0 em Alfama (que não quis ser identificada) que usa o AL como fonte complementar de rendimentos e que diz que as poucas reservas que tem para os próximos meses a impedem de poder usar as casas da forma como quiser — como emprestar a um amigo que precise de quarentena — sem pagar ela própria uma penalização.
Depois, porque a manutenção das reservas não quer dizer que todas as pessoas que as marcaram estejam ainda a pensar viajar nessas datas, mas antes que estão à espera de ver o que acontece, e se podem ser reembolsadas também a 100%, taxas Airbnb incluído. “As iniciativas de cancelamento são feitas entre 30 a 90 dias. As dos próximos 30 dias estão canceladas, o que tem surgido agora são cancelamentos ligados a Maio e Junho”, diz Eduardo Miranda.
Novos registos abrandam
Para já, os novos registos já parecem mostrar um certo efeito travão. De acordo com o Registo Nacional de Alojamento Local (RNAL), do Turismo de Portugal, entre os dias 1 e 23 de Março foram feitos 802 novos registos, dos quais 242 na última semana (com destaque para o Algarve), o que representa descidas de 19% e de 26%, respectivamente, em termos homólogos.
Para o presidente da ALEP, neste momento “não tem a menor lógica alguém estar a fazer um registo, a apostar numa coisa nova”. Provavelmente, diz, os novos registos em causa dizem respeito a projectos que já estavam na sua fase final.
Depois dos anos do boom de 2017 (com taxas de crescimento recorde no turismo) e 2018, no ano passado houve já um abrandamento no sector. De acordo com os dados do RNAL, disponibilizados pelo Turismo de Portugal, houve 14.899 registos de AL no ano passado, o que representa menos 43% face a 2018. Por outro lado, houve um recorde nos cancelamentos (por parte das câmaras) e nas cessações (por parte dos proprietários), que chegaram aos 4606. Aqui, o destaque vai para os registos de AL cessados, que totalizaram 3408, dos quais 1698 no concelho de Lisboa e 1030 no concelho do Porto.
Não se sabe se estes alojamentos transitaram para o mercado de arrendamento tradicional, mas Eduardo Miranda avança que, já antes desta crise provocada pela pandemia, “uma parcela”, sobretudo nos centros urbanos de Lisboa e do Porto, dava sinais de estar disponível para fazer essa “transição”.
“Já havia aqui uma concentração grande de oferta. A novidade já estava a passar um pouco e as pessoas já estavam caindo em si e a perceber que o AL dá trabalho e que não é uma galinha de ovos de ouro”, nota o responsável.
Agora, perante estes tempos de incerteza, Eduardo Miranda reconhece que será “normal” que mais pessoas ponderem colocar as casas no mercado de arrendamento. E isso vai poder perceber-se melhor, nota, quando arrancarem os programas camarários, em Lisboa e no Porto, em que as autarquias querem arrendar casas a proprietários privados — nomeadamente aos que têm AL e fazer com que essas fracções transitem para o arrendamento de longa duração — e subarrendá-las aos jovens e classes médias a custos controlados, tentando fazer face à escassez de habitação acessível nos grandes centros urbanos.
“Eu acho que vão ter uma boa adesão”, nota Eduardo Miranda, para quem é “perfeitamente natural” que esta transição seja feita. “Ainda bem que este é um sector de actividade em que se as pessoas quiserem mudar, desistir, têm uma alternativa rápida e fácil e que é óptima para as cidades”, admite.
Por agora, Ana Cunha não quer passar as casas para o arrendamento tradicional. Foi a primeira ideia que lhe ocorreu quando percebeu as dificuldades que se avizinham, mas teme que não seja boa altura porque toda a população estará também em dificuldades.
No caso da proprietária de dois AL em Alfama, o aluguer não é de excluir (a estudantes, por exemplo) mas, para já, a palavra de ordem é aguardar pelos próximos meses. Da mesma forma, João P. espera por Junho e de Julho para tentar perceber a dimensão da crise, mas a antevisão é pessimista: “Penso que não vai haver turismo este ano”, diz. Para já, emprestou a casa um casal, ele técnico do INEM (ambulâncias), ela bombeira. “Todos temos de contribuir face ao que se está a passar”, defende.